COMO AS DEMOCRACIAS MORREM: Esse livro está realmente falando de democracia?

COMO AS DEMOCRACIAS MORREM
De Steven Levitsky e Daniel Ziblatt
Publicação original nos EUA, ano 2018
Edição Brasil, ano 2018
Editora Zahar 
272 páginas


Nos últimos anos tem crescido o interesse mundial pelo destino dos regimes políticos ditos democráticos mundo afora. Livros de análise política recheiam prateleiras de várias livrarias físicas e virtuais por todos os cantos. E não é para menos, a formatação dos regimes políticos mundiais tem apresentado sérias alterações. Países que se diziam democráticos estão vendo, com certo assombro, sua política ser infiltrada por várias ideias de extrema direita. E, foi nesse contexto conturbado, que os professores de ciência política de Harvard, os norte-americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt publicaram seu livro intitulado “Como as Democracias Morrem”.

Após um ano do governo de Donald Trump, os escritores decidiram publicar suas análises apontando vários erros, ameaças e problemas ao sistema político norte-americano ocorridos naquele período. Junto a isso, os professores apresentaram uma análise geral do regime político estadunidense desde os seus primórdios e, também, ofereceram “soluções” para barrar o que eles entenderam como ameaças aos ditames democráticos da política norte-americana. 


Com dois professores de Harvard a encabeçar a obra, o mundo celebrou essa publicação. O livro fez sucesso em vários países, foi traduzido para várias línguas e ficou durante várias semanas nas listas dos mais vendidos. Um fenômeno editorial dessa monta realmente não é algo a ser menosprezado.


Em resumo, o livro afirma que os EUA possuem a democracia mais tradicional e robusta do 

mundo. Que é um regime político que funciona por regras escritas e não escritas e que, quando essas regras não escritas são ignoradas, a retração democrática é praticamente certa. Nesse contexto, os autores fazem uma análise bastante sistemática do perfil de atuação do governo Trump (tem até uma tabela), apontando todos os traços que eles entenderam como antidemocráticos, os quais, segundo eles, já foram deflagrados fartamente em vários outros países e, agora, são facilmente encontrados em Trump. O livro conta, ainda, com um panorama histórico da política norte-americana com ênfase no período de abolição da escravatura e os motivos que levaram a nação a experimentar, de acordo com a análise pessoal dos autores, período de plena ordem democrática dentro do país. 

Tudo parece ir bem até que o leitor se questione acerca do próprio conceito de democracia. A democracia apresentada pelos professores de Harvard é um regime político calcado em exclusão racial. Segundo eles, os EUA só conseguiram sua democracia plena quando os partidos políticos – Partido Republicano e Partido Democrata – concordaram em retirar da agenda política toda e qualquer discussão acerca da inclusão social dos negros na vida social e política norte-americana, revogando seu direito a voto e relegando essa parcela da população à condição de subcidadão. Eles afirmam - com todas as letras - que quando os partidos políticos entenderam que as questões sociais deveriam ser relegadas a segundo plano e que a política estadunidense deveria se ater exclusivamente a questões econômicas, a democracia plena começou a brilhar.


O interessante é que depois de fazer uma análise bastante acurada do perfil despótico de Trump, o livro vai defender que o sistema político norte-americano já teria alcançado a democracia plena e que a luta agora seria para garantir sua manutenção exatamente como está formatado atualmente. Para os autores, os EUA já alcançaram o sistema ideal de democracia e já identificaram quais as regras formais e informais responsáveis por mantê-la intacta.


Lendo essa obra sem se ter às entrelinhas, ela parece levar ao consenso de que a democracia norte-americana, além de ser um sistema a ser celebrado e copiado, é um regime praticamente perfeito que merece ser preservado. Durante todo o livro, a estrutura narrativa oferecida é a de que aquele sistema é o ideal e que deve ser mantido. Que todos os esforços da sociedade precisam ser realizados com essa intenção. Os escritores recheiam seu livro com dados históricos que servem de exemplo de como as coisas se comportaram no passado e o que, na opinião pessoal deles, deu certo e precisa ser repetido.


Falando assim, em termos genéricos, parece que toda a argumentação oferecida pelos autores é realmente algo a ser elogiado, afinal o que pode ser mais louvável do que defender a manutenção da democracia?

Pois é exatamente aí que está a questão: que democracia?

O conceito abstrato atual de democracia é algo que está no inconsciente coletivo: um regime político em que todas as pessoas possuam voz, direitos e deveres iguais e tratamento isonômico. Não parece haver alguém que acredite que a democracia seja algo muito diferente disso. Obviamente, é possível encontrar algumas alterações nesse conceito, mas não substancialmente.


Assim, quando investigamos o sistema democrático defendido pelos autores, nos deparamos com um regime político que nada se parece com isso. Um regime em que somente os “autorizados” possuem direito à voz. Isso fica bem claro quando os autores colocam os partidos políticos na posição de “guardiões da democracia”.


Na teoria oferecida, é tarefa elementar dos partidos políticos estabelecidos (Republicano e Democrata), barrar outsiders da política nacional. Eles dão exemplos de nomes como Henry Ford, Jesse Jackson, Pat Roberson, Pat Buchanan, Steve Forbes entre outros. Segundo eles, estes outsiders foram mantidos fora da política pelo trabalho eficiente dos “guardiões da democracia”, que atuaram firmemente para mantê-los longe da cadeira presidencial. E eles descrevem essa atuação como longas reuniões - em quartos enfumaçados pela fumaça de charutos - em que os caciques dos partidos deliberavam os nomes que poderiam ou não participar da política norte-americana, de modo a manter qualquer ameaça longe de cargos importantes e, ao fim e ao cabo, preservar a dita democracia.


Essa visão desenhada pelos autores parece dar conta de um movimento muito importante de contenção de ameaças antidemocráticas, mas quando analisamos melhor esse tipo de informação, podemos concluir que esses quartos enfumaçados eram onde os caciques determinavam quem poderia ou não participar do clube dos mais ricos e poderosos. Numa análise superficial, os “guardiões” estariam defendendo a democracia, mas ao conjugarmos essa informação com as outras oferecidas pelo livro, notamos que não era bem a democracia como ideal a ser alcançado que esses “guardiões” guardavam, mas sim seus privilégios políticos, sua capacidade de manejar a seu bel prazer o jogo “democrático”. Desnudando a ginástica argumentativa dos autores, fica bem claro que somente os cidadãos brancos e com vasto patrimônio seriam capazes de exercer o direito a participar e decidir os rumos do país. Analisando bem, talvez o sistema norte-americano se pareça mais com o sistema grego de democracia, em que somente os homens de posse - os cidadãos - poderiam participar. Se esse é o ideal a ser alcançado, então está validada a exclusão racial e étnica da política estadunidense. 


E para corroborar ainda mais essa ideia, os autores alegam, ainda, que o que rompe definitivamente os pilares democráticos é a polarização das ideias. Nesse assunto, eles darão o exemplo ocorrido no período que culminou no fim da escravidão nos EUA. O livro afirma que o regime democrático norte-americano estava se estabelecendo de uma forma satisfatória e era baseado, entre outras coisas, em duas regras não escritas bem delimitadas: respeito mútuo pelos opositores políticos e respeito às instituições. No entanto, quando naquela época o partido republicano passou a encampar a ideia da abolição da escravidão nos Estados do Sul, esse movimento teria abalado as regras não escritas da democracia, possibilitando que os partidários iniciassem embates ideológicos muito difíceis de serem manejados, o que eles chamaram de polarização. Por conta disso, eles alegam expressamente que foi a questão racial que derrubou os pilares democráticos dos EUA, dando espaço, inclusive, à Guerra Civil Americana ocorrida entre 1861 e 1865.


Nesse sentido seguem trechos do próprio livro:

“Várias décadas se passaram até essa busca obstinada pela vitória permanente se acalmar e ceder. As exigências da política cotidiana e da ascensão de uma nova geração de políticos de carreira ajudou a baixar a sanha competitiva. A geração pós-revolucionária se acostumou cada vez mais à ideia de que em política às vezes se ganha, às vezes se perde – e de que rivais não precisam ser inimigos.”

“Contudo, as normas nascentes logo começaram a se esgarçar, por conta de uma questão que os fundadores tinham tentado suprimir: a escravidão. Durante os anos 1850, um conflito cada vez mais aberto sobre o futuro da escravidão polarizou o país, investindo a política do que um historiador chamou de uma nova “intensidade emocional.”

“A polarização sobre a escravidão despedaçou a ainda frágil norma de tolerância mútua.” 

“Aos poucos, contudo, à medida que a geração da guerra civil saía de cena, democratas e republicanos foram aprendendo a conviver. Eles prestaram atenção nas palavras do ex-presidente da Câmara James Blaine, que, em 1880, aconselhou os colegas republicanos a “guardar a camisa ensanguentada” e deslocar o debate para questões econômicas.”

“No entanto, não foi apenas o tempo que cicatrizou as feridas sectárias. A tolerância mútua só se estabeleceu depois que a questão da igualdade racial foi retirada da agenda política.”

“É difícil superestimar a significado trágico desses acontecimentos. Como os direitos civis e de voto eram vistos por muitos democratas sulistas como uma ameaça fundamental, o acordo entre os partidos de abandonar essas questões propiciou uma base para que restaurassem a tolerância mútua. A revogação dos direitos dos afro-americanos preservou a supremacia branca e o domínio do Partido Democrata no Sul, o que ajudou a manter a viabilidade nacional dos democratas. Com a igualdade racial fora da agenda, os medos dos democratas sulistas cederam. Só então a hostilidade sectária começou a diminuir. Paradoxalmente, portanto, as normas que mais tarde serviriam como fundação para a democracia norte-americana emergiram de um arranjo profundamente antidemocrático: a exclusão racial e a consolidação da predominância de um partido único no Sul.”

“Quando o ódio sectário pisoteia o compromisso dos políticos com o espírito da Constituição, o sistema de freios e contrapesos corre o risco de ser subvertido de duas maneiras.”

“As normas que sustentam nosso sistema político repousavam, num grau considerável, em exclusão racial. A estabilidade do período entre o final da Reconstrução e os anos 1980 estava enraizada num pecado original: o Compromisso de 1877 e suas consequências, que permitiram a desdemocratização do Sul e a consolidação das leis de Jim Crow. A exclusão racial contribuiu diretamente para a civilidade e a cooperação partidárias que passaram a caracterizar a política norte-americana no século XX.”
Pois bem, diante dos exemplos acima fica bastante claro o tipo de argumentação utilizada no texto. De modo geral, os autores afirmam que o regime democrático norte-americano anda bem quando somente aqueles homens - brancos, encerrados em quartos enfumaçados - garantem que serão candidatos apenas os políticos que aceitem jogar o jogo pelas regras estabelecidas pelos caciques. Essa é a ideia vendida no livro. 

Não bastasse isso, eles afirmam, também, que a questão racial despedaçou a democracia (e a pergunta que fica é: democracia pra quem?), e que somente quando os políticos concordaram em se ater única e exclusivamente às questões econômicas (que de modo geral, garante que os ricos caciques dos partidos continuem ricos ou aumentem sua própria riqueza por meio da política), é que a democracia voltou a apresentar-se de forma plena.


Toda essa argumentação é facilmente demonstrada num silogismo simples: 


O regime democrático norte-americano somente é possível sem polarização; Tudo o que gera polarização deve ser retirado da agenda política; A questão da exclusão racial gera polarização; Logo, a questão da exclusão racial impossibilita a manutenção do regime-democrático norte-americano, e, por isso, deve ser retida da pauta política. Fim.

Avançando na leitura, nota-se que os autores censuram todos os assuntos que tenham algum tipo de apelo social, já que eles, quando colocados em pauta, podem ocasionar a tão temida polarização e, consequente, a derrubada dos pilares “democráticos”. Assim, conclui-se que a ordem estabelecida nos EUA deve ser mantida a qualquer custo, mesmo que haja problemas sociais de profunda importância como a exclusão racial ou, mais recentemente, os direitos dos imigrantes e não-brancos no país.


Numa análise mais apurada da argumentação do livro, descobrimos que o que os escritores defendem não é a democracia no sentido comum do termo, e sim a institucionalização do regime político vigente hoje. O que interessa não é o bem da sociedade norte-americana, e sim se as instituições que compõem esse regime político de exclusão social e tutela apenas de questões econômicas continuarão a funcionar plenamente a custa do suor e sofrimento da parcela de excluídos. Segundo eles, as instituições que compõem o jogo político norte-americano são muito mais importantes que os pleitos da população.


E isso fica cristalino quando os autores defendem a teoria de que esses debates sociais é que desmontam os sistemas democráticos pelo mundo. Mas isso é feito de uma maneira muito peculiar, pois ao mesmo tempo em que eles repudiam a ascensão de um candidato de extrema-direita como o Trump, eles manejam a narrativa para colocar a “culpa” nos políticos que demonstraram quaisquer inclinações sociais. É quase como se a razão do Trump ter chegado à presidência fosse o fato das pessoas não estarem mais contentes com as injustiças sociais do país, assuntos que jamais deveriam entrar no debate político, que, como salientado, deveria se ater exclusivamente às questões econômicas. O que importa se as pessoas estão passando fome, não possuem acesso à escolas de qualidade ou sistema de saúde? Realmente, são assuntos bem irrelevantes...


Numa relação de causa e efeito, o livro afirma que a ascensão de demagogos como o Trump se daria pelo fato das pessoas questionarem questões sociais que não deveriam entrar no debate político, jamais, a não ser de forma pontual para resolver alguma revolta popular individualizada (como o voto das mulheres ou a Declaração dos Direitos Civis de 1964, que, segundo os autores teriam resolvido completamente o problema da exclusão de gênero e racial dotando o país com uma democracia plena).


Enveredando por esse lado, a narrativa nos leva à conclusão de que a democracia anda bem quando somente as questões econômicas estão em pauta, sem esquecer que são as questões econômicas dos brancos já ricos, e não a situação econômica dos pobres, que devem “fazer-se” por si próprios como dita a boa e velha meritocracia. Eles que se tornem ricos e, a partir daí, tenham suas questões atendidas pela política de viés econômico. Ou seja: Eles que lutem!


É fácil entender o êxito internacional que esse livro tem alcançado. Com a ascensão da extrema-direita no mundo e a maior potência mundial com um presidente que destoa completamente das obrigações e posturas que o cargo exige, todos querem saber a receita de bolo para identificar e barrar essa aberração. Com essa demanda em alta, publicar um livro que busca explicar pormenorizadamente esse movimento é um grande apelo de vendas. Se os escritores são nativos desse país considerado a potência mundial, ainda melhor. Se eles estão alicerçados em uma das mais famosas, elitistas e respeitadas universidades do mundo, está feito: sucesso na certa! O marketing para garantir esse sucesso só precisa da palavra “best-seller” e estar numa das listas de livros mais respeitadas do mundo: a lista de “best-seller” do New York Times. É óbvio que todos cairão como moscas num livro com tais predicados.


E foi nesse clima de “inventaram a roda” que o Como as Democracias Morrem foi lançado. Como um manual de sobrevivência das democracias ameaçadas no mundo.


Não há como negar que o livro possui várias informações, ainda que superficiais, sobre a política norte-americana. Num livro de 272 páginas com letras grandes - e escrito com tamanha pressa - é de se esperar que a análise não fosse a das mais aprofundadas e, por isso, é possível notar aspectos relativamente subavaliados no texto, principalmente os sociais. Os escritores oferecem uma hipótese e a isolam desconsiderando que a sociedade é muito mais complexa do que uma reunião de homens brancos e ricos em salas enfumaçadas. Falar que a exclusão racial foi a base de manutenção da democracia norte-americana (cujas consequências ainda são absurdas para a população afro-americana e, agora, para os imigrantes e não brancos), é realmente declarar que o "EUA-branco" vive numa bolha de privilégios e que o destino das outras pessoas sem rosto pouco importa para a Nação. Como já dito: Eles que lutem!


É de causar desconforto o tom de irrelevância que a análise dos professores de Harvard faz da democracia. É estranho pensar que o regime democrático ideal é aquele que ignora direitos de pessoas, que as deixam resolver seus “pequenos” e “irrelevantes” problemas sociais por meio de migalhas conseguidas com sofrimento e sangue.


Antes do livro oferecer uma resposta, ele aponta dedos para os “caras-maus”. Ele diz quem são os vilões da história, e não é de surpreender-se que os vilões são aqueles que demonstram as mínimas inclinações sociais, mas as mínimas mesmo. O espectro político aventado pelos escritores só pode flutuar por dois caminhos: conservador ou liberal. Qualquer coisa que destoe destas duas posições será considerada antipatriótica, um atentado à liberdade individual do povo estadunidense e uma via perigosa para a dita democracia norte-americana.


Há quem vá defender a ideia do livro achando que é muito boa, afinal de contas, é muito melhor retomar algo ruim conhecido do que tentar melhorar com algo desconhecido. As instituições precisam ser mantidas, as coisas precisam continuar como sempre foram: uma democracia de fachada em que o Estado é usado para o benefício individual dos grandes investidores e proprietários. O Estado fornecendo migalhas para a população continuar calma e anestesiada enquanto é espoliado no que é essencial: sua vida. Aceitar a argumentação desse livro é aceitar que a máquina estatal deve continuar exatamente como está, na mão de homens com dinheiro que usam a política para maximizar seus próprios lucros, calando a população por meio de propaganda, migalhas e repressão. 


Enfim, essa é a história que eles querem vender. É isso que as pessoas estão a engolir. A economia é a base da democracia, o resto é resto e que outros se importem com esse resto, pois a “democracia” precisa ser mantida intacta se atendo somente às questões econômicas. Aplaudir essa obra é aplaudir essa ideia, é aplaudir a exclusão social, a injustiça, o descaso e a violência de Estado, fatores que deveriam ser rechaçados pelos regimes democráticos e, não, apoiados como na obra em questão. Em realidade, mais parece que os escritores estão oferecendo um texto de doutrinação neoliberal com um "quiz" para reconhecer um ditador. Infelizmente, muitos concordam e, talvez por isso, que o mundo esteja o caos que está.

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