Marcações #13 - O Tambor (Günter Grass)

Eis as marcações de "O Tambor" de Günter Grass:

"Quando eu disse para Bruno: "Oh, Bruno, você me compraria quinhentas folhas de papel virgem?", ele, olhando o teto e com o dedo indicador apontado na mesma direção em busca de um termo de referência, replicou: "De papel branco, sr. Oskar?" Insisti na palavrinha "virgem" e pedi a Bruno para dizer exatamente isso na papelaria. Ao fim da tarde, quando voltou com o embrulho, me deu a impressão de estar agitado por seus pensamentos. Várias vezes fitou o teto, de onde costuma retirar inspiração, e finalmente disse: "O senhor me sugeriu a palavra exata; pedi papel virgem e a vendedora enrubesceu intensamente antes de trazê-lo." Temendo longa digressão sobre balconistas de papelaria, me arrependi de ter denominado virgem o papel e fiquei calado, esperando que Bruno deixasse o quarto, e só então abri o embrulho com as quinhentas folhas. Por algum tempo levantei e sopesei o maço resistente. Contei dez folhas e guardei o resto na mesa de cabeceira. Na gaveta, ao lado do álbum de fotografias, encontrei a minha canetatinteiro: está cheia, tinta não é problema; como começarei? Pode-se começar uma história pelo meio e avançar e retroceder, embrulhar ousadamente as coisas. Pode-se ser moderno, eliminar toda e qualquer menção a tempo e distância, e no final proclamar, ou deixar que alguém proclame, que por fim e na última hora se resolveu o problema do espaço-tempo. Pode-se também logo no início afirmar que nos nossos dias é impossível escrever um romance, mas, por assim dizer, dissimuladamente produzir um bem grande, para posar como o último dos romancistas possível. Também me asseguraram que é bom e modesto começar afirmando que um romance já não pode ter herói, porque se acabaram os individualistas, porque a individualidade pertence ao passado, porque o homem — cada homem e todos os homens Igualmente — está só e sem direito à solidão individual e constitui uma massa solitária anônima e sem herói. Tudo isso pode ser verdade. No que diz respeito a mim, Oskar, e a meu enfermeiro Bruno, quero, contudo, deixar claro: somos ambos heróis, heróis bastante diferentes, ele atrás do postigo e eu na frente; e quando ele abre a porta, ambos estamos longe de ser, apesar de toda nossa amizade e solidão, uma massa anônima e sem herói." (pág.15/16)

"Ao contrário de meu avô Joseph, que raramente engolia um traguinho de conhaque, Gregor era um verdadeiro cachaceiro, qualidade que provavelmente herdara de minha bisavó. Não bebia porque estivesse triste. E mesmo quando estava contente, uma situação rara, pois era dado a estados de melancolia, não bebia por estar feliz. Bebia porque era um homem completo, que gostava de chegar ao fundo das coisas: das garrafas, assim como de outras coisas. Enquanto viveu, ninguém viu Gregor Koljaiczek deixar um só pingo no fundo de seu copo." (pág.45)

"Era um moço franzino que caminhava ligeiramente encurvado, com uma bela cara oval, um pouco demasiado suave talvez, e um par de olhos suficientemente azuis para fazer com que mamãe, então com 17 anos, se enamorasse dele. Três vezes Jan tinha sido convocado para o alistamento e sempre fora declarado incapaz por causa de sua deplorável constituição física; isso de fato lança muita luz sobre sua natureza enfermiça, naqueles dias em que qualquer homem que pudesse parar meio ereto era mandado a Verdun para, em solo francês, submeter-se a uma radical mudança de postura, da vertical para a perpétua horizontal." (pág.46)

"A minha entrada, puxado por sua mão, houve risos entre a gentalha e as mães da gentalha. A um moleque gorducho, que queria bater em meu tambor, dei uns bons chutes na canela, para evitar partir vidros; isso o fez cair e dar com a cabeça, desmanchando seu penteado, sobre uma carteira, o que me valeu por parte de mamãe um sopapo na nuca. O pequeno monstro berrou. Eu não: eu só gritava quando alguém tentava me surrupiar o tambor. Mamãe, para quem tal cena fora muito constrangedora, me meteu na primeira carteira da fila junto das janelas. Naturalmente, a carteira era demasiado alta. Para trás, contudo, onde a gentalha era ainda mais sardenta e grosseira, as carteiras eram ainda mais altas." (pág.89)

"É verdade que estive tão absorvido com as atividades pedagógicas de Gretchen Scheffler, tão desgastado entre Goethe e Rasputin, que mesmo com a melhor das intenções não poderia ter achado tempo para a brincadeira do anel ou do escondeesconde. Mas sempre que, como os sábios, voltava as costas aos livros, declarando- os sepulcros das letras, e procurava contato com a gente comum, encontrava o pequeno batalhão de canibais que vivia em nosso edifício e, depois do breve contato com eles, sentia-me realmente feliz ao voltar a salvo a meus livros." (pág.111)

"E ao encostar a dama de copas no rei com o coração vermelho, o edifício não ruiu: mantinha-se de pé, aéreo, sensível e respirando de leve, naquele quarto cheio de mortos que não respiravam e de vivos que continham o alento. Permitiu-nos juntar as mãos e fez o cético Oskar, que contemplava o castelo de cartas como mandam as regras, esquecer a acre fumarada e o fedor que se filtravam lentamente e em espiral pelas fendas da porta do depósito de correspondência e davam a impressão de que aquele quartinho onde se erigia um castelo de cartas confinava diretamente com o inferno." (pág.286)

"Mas, como acontece com todo mundo, em dias em que inoportunos sentimentos de culpa, que nada consegue dissipar, vêm se acomodar em meio aos travesseiros de minha cama de hospital, escudo-me em minha ignorância — ignorância que então virará moda e que ainda hoje muitos dentre nossos cidadãos adotam como se usa um chapéu elegante. Oskar, o astuto ignorante, foi levado na condição de vítima inocente da barbárie polonesa [...]" (pág.291)

"Herzog (vem lentamente pela direita, levando o telefone e o cabo, para muitas vezes e fala ao aparelho): Está dormindo, cabo Lankes? Algo se move em frente a Dora Sete. Não resta a menor dúvida! 
Lankes: São as freiras, meu tenente. 
Herzog: Que significa isso, freiras aqui! E se não forem? 
Lankes: Mas são. Distinguem-se perfeitamente. 
Herzog: E nunca ouviu falar de camuflagem, hein? Quinta-coluna, hein? Faz séculos que os ingleses praticam esse truque. Apresentam-se com a Bíblia e, de repente, bum! 
Lankes: Mas elas estão catando caranguejos, meu tenente. 
Herzog: Limpe imediatamente a praia! Entendido? 
Lankes: Às ordens, meu tenente. Mas não fazem outra coisa senão catar caranguejos. 
Herzog: O senhor vai se plantar imediatamente atrás da metralhadora, cabo Lankes! 
Lankes: Mas se só procuram caranguejos, porque é maré baixa e precisam deles para seu jardim-de-infância... 
Herzog: Ordens superiores! 
Lankes: As suas ordens, meu tenente! (Lankes desaparece dentro da casamata. Herzog sai com o telefone pela direita.) 
Oskar: Roswitha, tape ambos os ouvidos, porque vão atirar, como nos jornais da tela. 
Kitty: Oh, que terrível! Me amarrarei ainda mais. 
Bebra: Eu também suspeito que vamos ouvir algo. 
Felix: Devíamos tornar a ligar o gramofone. Isso atenua muitas coisas! (Põe o gramofone a funcionar. The Platters cantam The Great Pretender. Adaptando-se ao ritmo lento da música que enlanguesce tragicamente, a metralhadora matraqueia. Roswitha tapa os ouvidos. Felix para de cabeça para baixo. Ao fundo, cinco freiras voam com seus guarda-chuvas para o céu. O disco para, se repete; depois, silêncio. Felix planta os pés no chão. Kitty se desamarra. Roswitha apanha rapidamente a toalha com os restos da comida e guarda tudo no cesto de provisões. Oskar e Bebra ajudam-na. Descem todos do teto da casamata. Aparece Lankes à entrada.) 
[...]
No passeio da praia ainda nos aguardava o caminhão blindado. A passos largos, o tenente Herzog foi ter com seus protegidos. Arfante, desculpou-se com Bebra a propósito do pequeno incidente: "Zona proibida é zona proibida", disse. Ajudou as damas a subir ao veículo, deu algumas instruções ao motorista, e empreendemos a viagem de volta a Bavent. Tivemos de nos apressar, com pouco tempo para o almoço, porque para as duas da tarde tínhamos anunciada uma sessão na sala dos cavaleiros daquele gracioso pequeno castelo normando, situado atrás dos alamos à saída do povoado." (pág.401/403)

"Ah, se Maria não tivesse beijado apenas a criança maltratada, retardada, lamentavelmente anormal! Se tivesse sabido reconhecer o pai ferido e em cada ferida o amante! Que consolo, que esposo secreto e verdadeiro eu poderia ter sido para ela no curso dos meses sombrios que se avizinhavam!" (pág.414)

"Dava-me pena vê-la tão pequena ajoelhando debaixo do incenso, do pó e do estuque, dos anjos enrascados, de uma luz mortiça e de santos convulsos, ajoelhada e fazendo pela primeira vez o sinal-da-cruz ao contrário com os dedos ainda desajeitados, em frente, debaixo e em meio a um catolicismo suave e doloroso. E Oskar indicou a Maria, ávida de aprender, como se faz o sinal-da-cruz e onde habitam as Três Entidades — o Pai atrás da testa, o Filho no fundo do peito e o Espírito Santo nas extremidades das clavículas — e como se devem juntar as mãos para conseguir um Amém eficiente; e Maria, obedecendo, deixou suas mãos repousarem no Amém e começou a rezar. A princípio Oskar tentou também rezar por alguns de seus mortos, mas ao implorar ao Senhor que desse a sua Roswitha o descanso eterno e ela tivesse acesso às delícias do Paraíso, enredou- se de tal forma em detalhes de natureza terrestre que acabou por identificar o descanso eterno e as delícias celestiais com um hotel de Paris. De modo que me refugiei no Prefácio, pois este não comporta nenhum compromisso, e disse pelos séculos dos séculos, sursum corda e dignum et justum est — é digno e justo. E com isto me pus a observar Maria de soslaio." (pág.417/418)

"O sr. Matzerath saiu de Dantzig, que então já se chamava Gdansk, a doze de junho de quarenta e cinco, aproximadamente às 11 da manhã. Acompanhavam-no a viúva Maria Matzerath, a quem meu paciente designa como sua ex-amante, e Kurt Matzerath, filho presuntivo de meu paciente. Além disso, parecem ter-se achado no vagão outras 32 pessoas, entre elas quatro freiras franciscanas com hábitos e uma moça com lenço na cabeça, em quem o sr. Oskar Matzerath pretende ter reconhecido uma tal Luzie Rennwand. Em resposta a algumas perguntas minhas, contudo, meu paciente admite que aquela moça se chamava Regina Raeck, o que não o impede de falar a seguir de um rosto triangular anônimo de raposa, que depois volta a chamar de Luzie; de minha parte, continuarei aqui a chamar a referida moça de srta. Regina. Regina Raeck viajava com seus pais, avós e um tio doente, o qual, além de sua família, levava para o oeste um câncer maligno de estômago, falava demais e se apresentou, imediatamente após a saída, como antigo social-democrata." (pág.497)

"Recordando as habilidades de dançarino de Jan Bronski, lancei- me num tango: media duas cabeças menos que a srta. Gertrud e não só me dava conta do aspecto grotesco de nosso acoplamento, como também tendia a acentuá-lo. Ela se deixava conduzir com resignação, e eu, aguentando-a pela traseira com a palma da mão — senti trinta por cento de lã — empurrei a robusta srta. Gertrud, com minha bochecha junto à sua blusa, para trás, seguindo seus passos e solicitando espaço com nossos braços estendidos pela esquerda, de um extremo a outro da pista. A coisa foi melhor do que eu havia me atrevido a esperar. Permiti-me praticar umas evoluções e, sem perder em cima contato com sua blusa, aguentava- me em baixo, ora à direita, ora à esquerda de sua cadeira, que me oferecia apoio, e girava ao seu redor, sem perder nisso essa atitude clássica do tanguista, que tem por objetivo dar a impressão de que a dama vai cair para trás e o cavalheiro que procura tombá-la vai cair sobre ela, e contudo nem ele nem ela caem, porque ambos são excelentes dançarinos." (pág.533)

"Minha segunda tournée artística caiu no Advento. Elaborei, pois, meu programa de acordo e pude registrar os elogios tanto da imprensa católica quanto da protestante. Com efeito, consegui converter alguns velhos pecadores empedernidos em criancinhas que, com vozinhas frágeis e comovidas, cantavam canções natalinas. "Jesus, por ti vivo, Jesus, por ti morro", cantaram duas mil e quinhentas pessoas, que, em idade tão avançada, ninguém suporia capazes de fervor religioso tão infantil. De maneira similar procedi em minha terceira tournée, que caiu nos dias de Carnaval. Em nenhum dos chamados carnavais infantis se teria podido dar um espetáculo tão alegre e espontâneo como nos meus concertos, que transformavam toda vovozinha trêmula e qualquer vovozinho abalado em uma cômica ou ingênua noiva de pirata ou em um capitão de bandoleiros que fazia bangue-bangue." (pág.664)





Um comentário:

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