"No dia 26 de abril de 1986, à 1h23min58, uma série de explosões destruiu o reator e o prédio do quarto bloco da Central Elétrica Atômica (CEA) de Tchernóbil, situado bem próximo à fronteira da Belarús. A catástrofe de Tchernóbil se converteu no mais grave desastre tecnológico do século XX."
E assim se inicia o relato pungente das vozes daqueles que presenciaram uma das maiores catástrofes nucleares de que se tem notícia. É assim que vamos tomando consciência de que há muito mais no mundo do que imaginamos e o quanto somos vulneráveis frente a interesses muitos maiores que a própria vida: o poder.
"Hoje já se sabe. Já se escreveu sobre o ritmo acelerado com que se construiu a central atômica de Tchernóbil. Construiu-se à maneira soviética. Os japoneses levantam instalações como essa em doze anos, mas aqui fazemos em dois, três anos. A qualidade e a segurança de uma instalação especial como aquela não se distinguiam da de um complexo agropecuário. De uma granja de aves! Quando faltava algo, faziam vista grossa e substituíam esse algo por qualquer coisa que tivessem à mão. Assim, o teto da sala de máquinas se cobriu de alcatrão, que foi o que os bombeiros estiveram apagando. E quem dirigia a central atômica? Entre os diretores, não havia nenhum físico nuclear. Havia engenheiros de energia, de turbinas, comissários políticos, mas nenhum especialista. Nenhum físico. O homem inventou uma técnica para a qual ainda não está preparado. Não está ao seu nível. É possível dar uma pistola a uma criança? Nós somos crianças loucas. Mas isso são emoções, e eu me proíbo de me deixar levar pelas emoções."
Como consequência desse desastre, e da exposição diária da população daquela região à partículas radioativas, Svetlana nos informa que cresce a cada ano o número de casos de câncer, deficiência mental e de pessoas com disfunções neuropsicológicas e mutações genéticas. Inicialmente, nós podemos achar que esse é um problema só da Bielorrússia e região, mas a autora também informa a medição dos níveis de radiação nos dias subsequentes à catástrofe na Europa, Ásia e America do Norte, mostrando que as substâncias gasosas e voláteis se dispersaram pelo globo, tornando o problema mundial.
“Tchernóbil é a pior de todas as guerras. O homem não tem salvação em parte alguma. Nem na terra, nem na água, nem no céu.”
O livro, originalmente publicado em 1997, chegou no Brasil somente em 2016, depois da autora ser laureada com o prêmio máximo da Literatura, o Nobel. Após receber visibilidade internacional, Svetlana pôde mostrar ao mundo uma das feridas da União Soviética, a rusga escondida entre os escombros de um império decaído.
Após vinte anos do desastre, a queda do comunismo, o fim da Perestroica, podemos perceber que muito pouco foi feito para refrear os danos ou amparar as vítimas da catástrofe. Que nos meses seguintes, o intento soviético foi somente esconder as consequências nefastas de uma tragédia de proporções globais, que, até hoje, permanecem enterradas na pequena Bielorrússia, o epicentro do caos.
Por meio de relatos chocantes de testemunhas oculares do desastre, Svetlana vai descortinando as proporções absurdas da cobiça humana. O poder pelo poder. A insignificância do contingente humano numa nação voltada para o coletivo anônimo, a massa a serviço do Estado. Com um trabalho primoroso de pesquisa de campo, a autora faz do jornalismo investigativo um novo nível da literatura de informação, de denúncia. Seu livro é um pedido de socorro às vítimas esquecidas do massacre nuclear.
O primeiro relato está entre os mais chocantes do livro. São as memórias da esposa de um dos primeiros bombeiros enviados para conter a explosão do reator, os primeiros a entrar em contato com a radiação e a perecer por conta dela. Liudmila Ignátienko conta com detalhes como foi ver seu marido desmanchar de dentro para fora e engasgar com pedaços de seu próprio pulmão que se desintegrava.
"No hospital, nos últimos dias, eu levantava a mão dele e os ossos se moviam, dançavam, se separavam da carne. Saíam pela boca pedacinhos do pulmão, do fígado. Ele se asfixiava com as próprias vísceras. Eu envolvia a minha mão com gaze e a enfiava na boca dele para retirar tudo aquilo… É impossível contar isso! É impossível escrever sobre isso! E sobreviver… E tudo isso era tão querido… Tão meu… Nenhum número de sapato serviria… Puseram-no descalço no ataúde."
O trabalho da autora foi primoroso, nada no livro é gratuito. É possível perceber o trabalho delicado e meticuloso que ela teve para transcrever a história oral das pessoas intimamente prejudicadas pela falta de cuidado do Estado para com o desconhecido. As lembranças, as capitulações, as interjeições, tudo transcrito de modo a mostrar o quanto as pessoas foram afetadas por tudo aquilo.
"Ficamos melancólicos. Não podíamos arrancar aquilo de dentro de nós… Depois de três, quatro anos, um adoecia, outro… Um morria… Outro enlouquecia… Alguém se suicidava… Começamos a ficar melancólicos. Acho que só poderemos entender alguma coisa daqui a vinte ou trinta anos."
O tom de desesperança e desamparo permeia as narrativas daqueles que foram esquecidos com seus fardos a carregar. A loucura do dia-a-dia pesando como uma maleta de viagem que não se pode abandonar. A radiação está na pele, no corpo, no sangue. Não há como escapar das consequências, não há para onde correr. E em toda essa barbárie, o pior de tudo parece ser a própria falta de informação, ninguém os orientou contra o que lutar, contra o que se proteger. Nenhum deles pôde ver o inimigo invisível, silencioso e sorrateiro.
"Lembro-me dos títulos dos artigos: “Heróis do céu”; “Falcões de Tchernóbil”. E essa mulher… Essa mulher me confessou as suas dúvidas: “Agora escrevem que o meu marido foi um herói. E é verdade, é um herói. Mas o que é um herói? Eu sei que o meu marido foi um oficial honesto e eficiente. Disciplinado. E ao regressar de Tchernóbil, depois de alguns meses adoeceu. No Krémlin lhe deram uma medalha, encontrou companheiros e constatou que eles também estavam doentes. Mas ficaram contentes pelo reencontro. Regressou para casa feliz, com a medalha. Eu lhe perguntei: ‘Mas você poderia não ter ficado tão doente? Ter preservado a saúde?’. ‘É possível que sim, se tivesse pensado melhor’, ele me respondeu. ‘Eu precisaria de um bom traje de proteção, óculos especiais e máscara. Nós não tínhamos nem o primeiro item, nem o segundo, nem o terceiro. Se bem que nós mesmos não respeitávamos as normas de segurança pessoal. Nós não pensávamos.’ Todos nós pensávamos muito pouco. É uma pena que antes pensássemos tão pouco.”
No meio disso, o homem soviético passou a analisar sua própria realidade, as falhas de suas crenças, a inutilidade de seus dogmas que em nada contribuíram para salvar-lhe a vida.
"Vivemos tempo demais atrás do arame farpado, no campo socialista. Temíamos o outro mundo, não o conhecíamos. As mães e os pais de Tchernóbil são outro tema. É a continuação da conversa sobre a nossa mentalidade, a mentalidade soviética. A União Soviética caiu, desmoronou. E continuavam esperando a ajuda do grande e poderoso país que havia deixado de existir. O meu diagnóstico… Você quer? Uma mistura de prisão e jardim de infância, isso é o socialismo que conhecemos. O socialismo soviético. O homem entregava ao Estado a alma, a consciência, o coração, e em troca recebia uma ração. Uns tinham mais sorte, recebiam uma ração maior, outros ganhavam uma ração menor. No final das contas dava no mesmo, todos davam em troca a sua alma. Mais que tudo, temíamos que a nossa fundação caísse nesse tipo de distribuição de cotas. A cota de Tchernóbil. As pessoas já estavam acostumadas a esperar e a se queixar: “Eu sou de Tchernóbil. Isso me cabe porque eu sou de Tchernóbil”. O que eu entendo hoje é que Tchernóbil é também uma grande experiência para o nosso espírito, para a nossa cultura."
Entre os inúmeros problemas enfrentados pelas pessoas abandonadas à própria sorte, ainda há a questão do tratamento violento dado aos animais domésticos após o desastre. Na realidade, ninguém quis se ocupar deles, preferindo exterminá-los como uma praga a ser eliminada. Essa parte do livro também choca pela extrema insensibilidade do ser humano.
No entanto, em meio ao caos, há também relatos mais leves, que mostram como as pessoas tentaram sobreviver a tudo aquilo, aceitar a nova realidade e seguir em frente. A vida não acabou, é preciso continuar.
"Um dia, um grupo de cientistas chegou de helicóptero. Com roupas especiais de borracha, botas altas, óculos de proteção. Cosmonautas. Uma velha aproximou-se de um deles: “Quem é você?”. “Sou cientista.” “Ah, cientista, é? Olhem como está disfarçado. Mascarado. E nós, somos o quê?” E correu com um pau atrás dele. Mais de uma vez me passou pela cabeça que um dia os cientistas seriam caçados como se caçavam e queimavam médicos na Idade Média. Na fogueira."
Em resumo, esse é um livro espetacular que merece muito ser lido. Uma história que não deve cair no limbo das lembranças. Relatos pungentes de verdades que não se sustentam sozinhas, mas que fazem parte de um todo que nos foi entregue em forma de livro, e dos mais tocantes.
Assim, para terminar esse texto, transcrevo as palavras da própria Svetlana na cerimônia de premiação do Nobel, palavras estas que definem o livro melhor do que qualquer intento que se possa fazer para explicar esse primor de trabalho e dedicação:
"Sempre me atormentou o fato de que a verdade não se sustenta num só coração, num só espírito. Que ela é de algum modo fragmentada, múltipla, diversa e dispersa pelo mundo. Há em Dostoiévski a ideia de que a humanidade sabe muito mais sobre si mesma do que aquilo que consegue fixar na literatura. O que eu faço? Recolho sentimentos, pensamentos, palavras cotidianas. Reúno a vida do meu tempo. O que me interessa é a história da alma. A vida cotidiana da alma. Aquilo que a grande história geralmente deixa de lado, que trata com desdém. Eu me ocupo com a história omitida. Ouvi mais de uma vez e ainda ouço que isso não é literatura, que é documento. Mas o que é literatura hoje? Quem pode responder? Vivemos mais rápido que antes. O conteúdo rompe a forma. Ele a quebra e modifica. Tudo extravasa das margens: a música, a pintura e, no documento, a palavra escapa aos limites do documento. Não há fronteiras entre o fato e a ficção, um transborda sobre o outro. Mesmo a testemunha não é imparcial. Ao narrar, o homem cria, luta com o tempo assim como o escultor com o mármore. Ele é um ator e um criador. O que me interessa é o pequeno homem. O pequeno grande homem, eu diria, porque o sofrimento o torna maior. Nos meus livros, ele próprio conta a sua pequena história e, no momento em que faz isso, conta a grande história. O que aconteceu e acontece conosco é ainda incompreensível, é preciso ser pronunciado. Para começar, é preciso ao menos pôr tudo em palavras. E tememos isso, pois ainda não nos sentimos em condições de dar conta do nosso passado."
Por favor, leiam!!!
0 Comments: