Eis as marcações feitas no Kindle:
A
Civilização do Espetáculo (Mario Vargas Llosa)
Ao contrário, a publicidade e as modas que lançam e impõem
os produtos culturais em nossos tempos são um sério obstáculo à criação de
indivíduos independentes, capazes de julgar por si mesmos o que apreciam,
admiram, acham desagradável e enganoso ou horripilante em tais produtos. A
cultura-mundo, em vez de promover o indivíduo, imbeciliza-o, privando-o de
lucidez e livre-arbítrio, fazendo-o reagir à “cultura” dominante de maneira
condicionada e gregária, como os cães de Pavlov à campainha que anuncia a comida.
Outra afirmação d
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tendo o primeiro absorvido e anulado o segundo. É bom o que
tem sucesso e é vendido; mau o que fracassa e não conquista o público. O único
valor é o comercial. O desaparecimento da velha cultura implicou o
desaparecimento do velho conceito de valor. O único valor existente é agora o
fixado pelo mercado.
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É bom o que tem sucesso e é vendido; mau o que fracassa e
não conquista o público. O único valor é o comercial. O desaparecimento da
velha cultura implicou o desaparecimento do velho conceito de valor. O único
valor existente é agora o fixado pelo mercado.
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O que quer dizer civilização do espetáculo? É a civilização
de um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigente é ocupado pelo
entretenimento, onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal. Esse
ideal de vida é perfeitamente legítimo, sem dúvida. Só um puritano fanático
poderia reprovar os membros de uma sociedade que quisessem dar descontração,
relaxamento, humor e diversão a vidas geralmente enquadradas em rotinas
deprimentes e às vezes imbecilizantes.
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O que quer dizer civilização do espetáculo? É a civilização
de um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigente é ocupado pelo
entretenimento, onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal. Esse
ideal de vida é perfeitamente legítimo, sem dúvida. Só um puritano fanático poderia
reprovar os membros de uma sociedade que quisessem dar descontração,
relaxamento, humor e diversão a vidas geralmente enquadradas em rotinas
deprimentes e às vezes imbecilizantes. Mas transformar em valor supremo essa
propensão natural a divertir-se tem consequências inesperadas: banalização da
cultura, generalização da frivolidade e, no campo da informação, a proliferação
do jornalismo irresponsável da bisbilhotice e do escândalo.
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Massificação é outra característica, aliada à frivolidade,
da cultura de nosso tempo.
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empenhados em adotar formas alternativas de existência. Em
nossos dias o consumo maciço de maconha, cocaína, ecstasy, crack, heroína etc.
corresponde a um ambiente cultural que impele homens e mulheres a buscar
prazeres fáceis e rápidos que os imunizem contra a preocupação e a
responsabilidade, em lugar do encontro consigo mesmo através da reflexão e da
introspecção, atividades eminentemente intelectuais que parecem enfadonhas à
cultura volúvel e lúdica. Querer fugir ao vazio e à angústia provocada pelo sentimento
de ser livre e de ter a obrigação de tomar decisões, como o que fazer de si
mesmo e do mundo ao redor — sobretudo se este estiver enfrentando desafios e
dramas —, é o que suscita essa necessidade de distração, motor da civilização
em que vivemos.
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Na civilização do espetáculo, o cômico é rei.
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nações: o intelectual. Consta que a denominação
“intelectual” só nasceu no século XIX, durante o caso Dreyfus, na França, e as
polêmicas desencadeadas por Émile Zola com seu célebre “Eu acuso”, escrito em
defesa daquele oficial judeu falsamente acusado de traição à pátria por uma
conspiração de altos comandos antissemitas do Exército francês.
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trabalho de investigação, acadêmico ou criativo, bom número
de escritores e pensadores destacados influiu com seus escritos,
pronunciamentos e tomadas de posição nos acontecimentos políticos e sociais,
como ocorria quando eu era jovem, na Inglaterra com Bertrand Russell, na França
com Sartre e Camus, na Itália com Moravia e Vittorini, na Alemanha com Günter
Grass e Enzensberger, e o mesmo em quase todas as democracias europeias.
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na verdade, a real razão para a perda total do interesse do
conjunto da sociedade pelos intelectuais é consequência direta do ínfimo valor
que o pensamento tem na civilização do espetáculo. Porque outra característica
dela é o empobrecimento das ideias como força motriz da vida cultural. Hoje
vivemos a primazia das imagens sobre as ideias.
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essa marginalização talvez tenha efeito depurador e aniquile
a literatura do best-seller, chamada com justiça de subliteratura não só pela
superficialidade de suas histórias e pela indigência formal, como também por
seu caráter efêmero, de literatura de atualidade, feita para ser consumida e
desaparecer, como sabonetes e refrigerantes.)
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Mas, nossa época, em conformidade com a inflexível pressão
da cultura dominante, que privilegia o engenho em vez da inteligência, as
imagens em vez das ideias, o humor em vez da sisudez, o banal em vez do
profundo e o frívolo em vez do sério, já não produz criadores como Ingmar
Bergman, Luchino Visconti ou Luis Buñuel.
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Quanto às artes plásticas, adiantaram-se a todas as outras
expressões da vida cultural em assentar as bases da cultura do espetáculo,
estabelecendo que a arte podia ser jogo e farsa, nada mais que isso. Desde que
Marcel Duchamp — que, sem a menor dúvida, era um gênio — revolucionou os padrões
artísticos do Ocidente estabelecendo que um mictório também é uma obra de arte,
desde que assim seja decidido pelo artista, tudo passou a ser possível no
âmbito da pintura e da escultura, até um magnata pagar 12 milhões e meio de
euros por um tubarão conservado em formol num recipiente de vidro, e o autor
dessa brincadeira, Damien Hirst, ser hoje reverenciado não como extraordinário
vendedor de engodos, que é, mas como um grande artista de nosso tempo.
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Num perspicaz ensaio sobre as arrepiantes derivas que a arte
contemporânea chegou a tomar em casos extremos, Carlos Granés Maya cita “uma
das performances mais abjetas de que se tem lembrança na Colômbia”, a do
artista Fernando Pertuz, que numa galeria de arte defecou diante do público e,
depois, “com total solenidade”, passou a ingerir suas fezes.
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“Mas a civilização do espetáculo é cruel. Os espectadores
não têm memória; por isso também não têm remorsos nem verdadeira consciência.
Vivem presos à novidade, não importa qual, contanto que seja nova. Esquecem
depressa e passam sem pestanejar das cenas de morte e destruição da guerra do
Golfo Pérsico às curvas, contorções e trêmulos de Madonna e Michael Jackson.
Comandantes e bispos estão fadados à mesma sorte; também eles são aguardados
pelo Grande Bocejo, anônimo e universal, que é o Apocalipse e o Juízo Final da
sociedade do espetáculo.7 No âmbito
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“Mas a civilização do espetáculo é cruel. Os espectadores
não têm memória; por isso também não têm remorsos nem verdadeira consciência.
Vivem presos à novidade, não importa qual, contanto que seja nova. Esquecem depressa
e passam sem pestanejar das cenas de morte e destruição da guerra do Golfo
Pérsico às curvas, contorções e trêmulos de Madonna e Michael Jackson.
Comandantes e bispos estão fadados à mesma sorte; também eles são aguardados
pelo Grande Bocejo, anônimo e universal, que é o Apocalipse e o Juízo Final da
sociedade do espetáculo.7
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No âmbito do sexo nossa época passou por transformações
notáveis, graças à progressiva liberalização dos antigos preconceitos e tabus
de caráter religioso que mantinham a vida sexual dentro de um torniquete de
proibições. Nesse campo, sem dúvida, no mundo ocidental houve progressos, com a
aceitação das uniões livres, a redução da discriminação machista contra
mulheres, gays e outras minorias sexuais que pouco a pouco vão sendo integradas
na sociedade que, às vezes a contragosto, começa a reconhecer o direito à
liberdade sexual entre adultos. Está claro que a contrapartida dessa
emancipação sexual foi, também, a banalização do ato sexual, que, para muitos,
sobretudo nas novas gerações, se converteu em esporte ou passatempo, numa
atividade compartilhada que não tem mais importância que a ginástica, a dança
ou o futebol, quando não menos.
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A ingênua ideia de que, através da educação, se pode
transmitir cultura à totalidade da sociedade está destruindo a “alta cultura”,
pois a única maneira de conseguir essa democratização universal da cultura é
empobrecendo-a, tornando-a cada dia mais superficial.
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Debord, autodidata, vanguardista radical, heterodoxo,
agitador e promotor das provocações contraculturais dos anos 1960, qualifica de
“espetáculo” aquilo que Marx, em seus Manuscritos econômicos e filosóficos de
1844, chamou de “alienação” ou alheamento social resultante do fetichismo da
mercadoria, que, no estágio industrial avançado da sociedade capitalista,
atinge tal importância na vida dos consumidores que chega a substituir, como
interesse ou preocupação central, qualquer outro assunto de ordem cultural,
intelectual ou política. A aquisição obsessiva de produtos manufaturados, que
mantenham ativa e crescente a fabricação de mercadorias, produz o fenômeno da
“reificação” ou “coisificação” do indivíduo, entregue ao consumo sistemático de
objetos, muitas vezes inúteis ou supérfluos, que as modas e a publicidade lhe
vão impondo, esvaziando sua vida interior de preocupações sociais, espirituais
ou simplesmente humanas, isolando-o e destruindo a consciência que ele tenha
dos outros, de sua classe e de si mesmo; como consequência, por exemplo, o
proletário “desproletarizado” pela alienação deixa de ser um perigo — e até um
antagonista — para a classe dominante.
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Numerosos trabalhos nos últimos anos procuraram definir as
características distintivas da cultura de nosso tempo no contexto da
globalização, da mundialização do capitalismo e dos mercados, bem como da
extraordinária revolução tecnológica. Um dos mais perspicazes é o de Gilles
Lipovetsky e Jean Serroy, A cultura-mundo. Resposta a uma sociedade
desorientada.4 Ele defende a ideia de que em nossos dias há o enaltecimento de
uma cultura global — a cultura-mundo — que, apoiando-se no progressivo
apagamento das fronteiras operado pela ação dos mercados, da revolução
científica e tecnológica (sobretudo no campo das comunicações), vem criando,
pela primeira vez na história, alguns denominadores culturais dos quais
participam sociedades e indivíduos dos cinco continentes, aproximando-os e
igualando-os apesar das diferentes tradições, crenças e línguas que lhes são
próprias. Essa cultura, diferentemente do que antes tinha esse nome, deixou de
ser elitista, erudita e excludente e transformou-se em genuína “cultura de
massas”: “Em total oposição às vanguardas herméticas e elitistas, a cultura de
massas quer oferecer ao público mais amplo possível novidades acessíveis que
sirvam de entretenimento à maior quantidade possível de consumidores. Sua
intenção é divertir e dar prazer, possibilitar evasão fácil e acessível para
todos, sem necessidade de formação alguma, sem referentes culturais concretos e
eruditos. O que as indústrias culturais inventam nada mais é que uma cultura
transformada em artigos de consumo de massas” (p. 79).
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Por outro lado, algumas afirmações de Cultura-mundo me
parecem discutíveis, como o fato de essa nova cultura planetária ter
desenvolvido um individualismo extremo em todo o globo. Ao contrário, a
publicidade e as modas que lançam e impõem os produtos culturais em nossos
tempos são um sério obstáculo à criação de indivíduos independentes, capazes de
julgar por si mesmos o que apreciam, admiram, acham desagradável e enganoso ou
horripilante em tais produtos. A cultura-mundo, em vez de promover o indivíduo,
imbeciliza-o, privando-o de lucidez e livre-arbítrio, fazendo-o reagir à
“cultura” dominante de maneira condicionada e gregária, como os cães de Pavlov
à campainha que anuncia a comida.
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Em 2010 foi publicado na França pela Flammarion o livro
Mainstream, do sociólogo Frédéric Martel, que, de certo modo, mostra que a
“nova cultura” ou “cultura-mundo” de que falavam Lipovetsky e Serroy já ficou
para trás, defasada pela frenética voragem de nosso tempo. O livro de Martel é
fascinante e aterrorizante em sua descrição da “cultura do entretenimento” que
substituiu quase universalmente aquilo que há apenas meio século se entendia
por cultura. Mainstream é, na verdade, uma ambiciosa reportagem feita em grande
parte do mundo, com centenas de entrevistas, sobre aquilo que, graças à
globalização e à revolução audiovisual, é hoje em dia um denominador comum
entre os povos dos cinco continentes, apesar das diferenças de línguas,
religiões e costumes. No livro
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Outra afirmação de Lipovetsky e Serroy que se diria pouco
procedente consiste em supor-se que, em vista de milhões de turistas visitarem
o Louvre, a Acrópole e os anfiteatros gregos da Sicília, a cultura não perdeu
valor em nosso tempo e ainda goza “de elevada legitimidade” (p. 118). Os
autores não percebem que essas visitas de multidões a grandes museus e
monumentos históricos clássicos não representam um interesse genuíno pela “alta
cultura” (assim a chamam), mas mero esnobismo, visto que a visita a tais
lugares faz parte da obrigação do perfeito turista pós-moderno. Em vez de
despertar seu interesse pelo passado e pela arte clássica, exonera-o de
estudá-los e conhecê-los com um mínimo de competência. Um simples relance basta
para lhe dar boa consciência cultural. Essas visitas dos turistas “à cata de
distrações” desnaturam o significado real desses museus e monumentos e os
equiparam a outras obrigações do turista perfeito: comer macarrão e dançar uma
tarantela na Itália, aplaudir o flamenco e o cante hondo em Andaluzia e
experimentar escargots, ir ao Louvre assistir a um espetáculo do Folies
Bergère, em Paris.
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Para essa nova cultura são essenciais a produção industrial
maciça e o sucesso comercial. A distinção entre preço e valor se apagou, ambos
agora são um só, tendo o primeiro absorvido e anulado o segundo. É bom o que
tem sucesso e é vendido; mau o que fracassa e não conquista o público. O único
valor é o comercial. O desaparecimento da velha cultura implicou o
desaparecimento do velho conceito de valor. O único valor existente é agora o
fixado pelo mercado.
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O que quer dizer civilização do espetáculo? É a civilização
de um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigente é ocupado pelo
entretenimento, onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal. Esse
ideal de vida é perfeitamente legítimo, sem dúvida. Só um puritano fanático
poderia reprovar os membros de uma sociedade que quisessem dar descontração,
relaxamento, humor e diversão a vidas geralmente enquadradas em rotinas
deprimentes e às vezes imbecilizantes. Mas transformar em valor supremo essa
propensão natural a divertir-se tem consequências inesperadas: banalização da
cultura, generalização da frivolidade e, no campo da informação, a proliferação
do jornalismo irresponsável da bisbilhotice e do escândalo.
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Desse modo sistemático e ao mesmo tempo insensível, não se
entediar e evitar o que perturba, preocupa e angustia passou a ser, para
setores sociais cada vez mais amplos do vértice à base da pirâmide social, o
preceito de toda uma geração, aquilo que Ortega e Gasset chamava de “espírito de
nosso tempo”, deus folgazão, amante do luxo e frívolo, ao qual todos, sabendo
ou não, rendemos tributo há pelo menos meio século, e cada dia mais.
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Por isso, não é de estranhar que a literatura mais
representativa de nossa época seja a literatura light, leve, ligeira, fácil,
uma literatura que sem o menor rubor se propõe, acima de tudo e sobretudo (e
quase exclusivamente), divertir. Atenção, não condeno nem de longe os autores
dessa literatura de entretenimento, pois entre eles, apesar da leveza de seus
textos, há verdadeiros talentos. Se em nossa época raramente são empreendidas
aventuras literárias tão ousadas como as de Joyce, Virginia Woolf, Rilke ou
Borges, isso não se deve apenas aos escritores; deve-se também ao fato de que a
cultura em que vivemos imersos não propicia, ao contrário desencoraja, esses
esforços denodados que culminam em obras que exigem do leitor uma concentração
intelectual quase tão intensa quanto a que as possibilitou. Os leitores de hoje
querem livros fáceis, que os distraiam, e essa demanda exerce uma pressão que
se transforma em poderoso incentivo para os criadores.
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A literatura light, assim como o cinema light e a arte
light, dá ao leitor e ao espectador a cômoda impressão de que é culto,
revolucionário, moderno, de que está na vanguarda, com um mínimo esforço
intelectual. Desse modo, essa cultura que se pretende avançada, de ruptura, na
verdade propaga o conformismo através de suas piores manifestações: a
complacência e a autossatisfação.
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Quando uma cultura relega o exercício de pensar ao desvão
das coisas fora de moda e substitui ideias por imagens, os produtos literários
e artísticos são promovidos, aceitos ou rejeitados pelas técnicas publicitárias
e pelos reflexos condicionados de um público que carece de defesas intelectuais
e sensíveis para detectar os contrabandos e as extorsões de que é vítima.
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Massificação é outra característica, aliada à frivolidade,
da cultura de nosso tempo. Atualmente os esportes ganharam uma importância que
só tiveram na Grécia antiga. Para Platão, Sócrates, Aristóteles e demais
frequentadores da Academia, o cultivo do corpo era simultâneo e complementar ao
cultivo do espírito, pois acreditavam que ambos se enriqueciam mutuamente. A
diferença em relação à nossa época é que agora, em geral, a prática dos
esportes é feita em detrimento e em lugar do trabalho intelectual. Entre os
esportes, nenhum sobressai tanto quanto o futebol, fenômeno de massas que, tal
como os shows de música moderna, reúne multidões e as excita mais que qualquer
outra mobilização de cidadãos: comícios políticos, procissões religiosas ou
convocações cívicas. Certamente para os aficionados — eu sou um deles — um jogo
de futebol pode ser um espetáculo estupendo, de destreza e harmonia de conjunto
e desempenho individual, que entusiasma o espectador. Mas, em nossos dias, as
grandes partidas de futebol, assim como outrora os circos romanos, servem
sobretudo como pretexto e liberação do irracional, como regressão do indivíduo
à condição de partícipe da tribo, como momento gregário em que, amparado no
anonimato aconchegante da arquibancada, o espectador dá vazão a seus instintos
agressivos de rejeição ao outro, conquista e aniquilação simbólica (e às vezes
até real) do adversário. Os famosos grupos violentos de torcedores de certos
clubes e os estragos que provocam com seus confrontos homicidas, incêndios de
arquibancadas e dezenas de vítimas mostram que em muitos casos não é a prática
de um esporte o que imanta tantos torcedores aos campos (quase sempre homens,
embora seja cada vez maior o número de mulheres que frequentam os estádios), e
sim um ritual que desencadeia no indivíduo instintos e pulsões irracionais que
lhe permitem renunciar à sua condição civilizada e comportar-se durante a
partida como parte da horda primitiva.
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Ainda não havia encarado o assunto por este viés ... (por
Vargas Llosa em a Civilização do Espetáculo)
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A razão dessa proliferação de igrejas e seitas é que apenas
setores muito reduzidos de seres humanos conseguem prescindir inteiramente da
religião, que faz falta à imensa maioria, pois apenas a segurança transmitida
pela fé religiosa acerca da transcendência e da alma a liberta do desassossego,
do medo e do desvario em que a mergulha a ideia da extinção, do perecimento
total. E, de fato, a única maneira como a maioria dos seres humanos entende e
pratica uma ética é através de alguma religião. Só pequenas minorias se
emancipam da religião, substituindo com a cultura o vazio que ela deixa em sua
vida: filosofia, ciência, literatura e artes. Mas a cultura que pode cumprir
esta função é a alta cultura, que enfrenta os problemas e não foge deles, que
tenta dar respostas sérias, e não lúdicas, aos grandes enigmas, interrogações e
conflitos que cercam a existência humana. A cultura de superfície e ouropel, de
jogo e pose, é insuficiente para suprir certezas, mitos, mistérios e rituais
das religiões que sobreviveram à prova dos séculos. Na sociedade de nosso tempo
os entorpecentes e o álcool propiciam a momentânea tranquilidade de espírito e
as certezas e alívios que outrora eram garantidos a homens e mulheres por rezas,
confissão, comunhão e sermões dos párocos.
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Na civilização do espetáculo, o cômico é rei.
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Consta que a denominação “intelectual” só nasceu no século
XIX, durante o caso Dreyfus, na França, e as polêmicas desencadeadas por Émile
Zola com seu célebre “Eu acuso”, escrito em defesa daquele oficial judeu
falsamente acusado de traição à pátria
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Mas, embora o termo “intelectual” só tenha se popularizado a
partir de então, é certo que a participação de homens de pensamento e criação
na vida pública, nos debates políticos, religiosos e de ideias, remonta aos
primórdios do Ocidente. Esteve presente na Grécia de Platão e na Roma de
Cícero, no Renascimento de Montaigne e Maquiavel, no Iluminismo de Voltaire e
Diderot, no Romantismo de Lamartine e Victor Hugo e em todos os períodos
históricos que conduziram à modernidade.
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Paralelamente a seu trabalho de investigação, acadêmico ou
criativo, bom número de escritores e pensadores destacados influiu com seus
escritos, pronunciamentos e tomadas de posição nos acontecimentos políticos e
sociais, como ocorria quando eu era jovem, na Inglaterra com Bertrand Russell,
na França com Sartre e Camus, na Itália com Moravia e Vittorini, na Alemanha
com Günter Grass e Enzensberger, e o mesmo em quase todas as democracias
europeias. Basta pensar, na Espanha, nas intervenções de José Ortega y Gasset e
Miguel de Unamuno na vida pública.
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a real razão para a perda total do interesse do conjunto da
sociedade pelos intelectuais é consequência direta do ínfimo valor que o
pensamento tem na civilização do espetáculo.
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Porque outra característica dela é o empobrecimento das
ideias como força motriz da vida cultural. Hoje vivemos a primazia das imagens
sobre as ideias. Por isso os meios audiovisuais, cinema, televisão e agora a
internet, foram deixando os livros para trás, que, a se confirmarem as
previsões pessimistas de George Steiner, dentro de não muito tempo estarão
mortos e enterrados. (Os amantes da anacrônica cultura livresca, como eu, não
devem lamentar, pois, em sendo assim, essa marginalização talvez tenha efeito
depurador e aniquile a literatura do best-seller, chamada com justiça de
subliteratura não só pela superficialidade de suas histórias e pela indigência
formal, como também por seu caráter efêmero, de literatura de atualidade, feita
para ser consumida e desaparecer, como sabonetes e refrigerantes.)
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Mas, nossa época, em conformidade com a inflexível pressão
da cultura dominante, que privilegia o engenho em vez da inteligência, as
imagens em vez das ideias, o humor em vez da sisudez, o banal em vez do
profundo e o frívolo em vez do sério, já não produz criadores como Ingmar
Bergman, Luchino Visconti ou Luis Buñuel. Quem o cinema de nossos dias
transforma em ícone? Woody Allen, que está para David Lean ou Orson Welles como
Andy Warhol está para Gauguin ou para Van Gogh, em pintura, ou como Dario Fo
para Tchekhov ou para Ibsen em teatro.
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Tirante o branco [Tirant lo Blanc, em catalão], a esposa de
Guy de Warwick [Guillem de Vàroic, em catalão] dá uma bofetada no filho, um
menininho recém-nascido, para fazê-lo chorar pela partida do pai para
Jerusalém.
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Tirante o branco [Tirant lo Blanc, em catalão], a esposa de
Guy de Warwick [Guillem de Vàroic, em catalão] dá uma bofetada no filho, um
menininho recém-nascido, para fazê-lo chorar pela partida do pai para
Jerusalém. Nós, leitores, rimos, achando engraçado esse disparate, como se as
lágrimas arrancadas à pobre criatura pela bofetada pudessem ser confundidas com
o sentimento de tristeza. Mas nem a dama nem os personagens que contemplam a
cena riem, porque para eles pranto — forma pura — é tristeza. E não há outra
maneira de estar triste senão chorando — “derramando vivas lágrimas”, diz o
romance —, pois neste mundo é a forma que conta, e a serviço dela estão os
conteúdos dos atos. Isso é frivolidade, maneira de entender o mundo, a vida,
segundo a qual tudo é aparência, ou seja, teatro, ou seja, brincadeira e
diversão.)
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encontrar esse livro
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O sexo light é o sexo sem amor e sem imaginação, o sexo
puramente instintivo e animal. Desafoga uma necessidade biológica, mas não
enriquece a vida sensível e emocional, nem estreita a relação do casal para
além do embate carnal; em vez de livrar o homem ou a mulher da solidão, passado
o ato urgente e fugaz do amor físico, devolve-os à solidão com uma sensação de
fracasso e frustração.
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ricos, vencedores e famosos deste vale de lágrimas se casam,
se descasam, se recasam, se vestem, se desvestem, brigam, se reconciliam,
gastam milhões, têm caprichos e gostos, desgostos e maus gostos.
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Mas o que dizer de um fenômeno como a ¡Hola!?8 Essa revista,
que agora é publicada não só em espanhol, mas em 11 idiomas, é avidamente lida
— talvez seja mais exato dizer folheada — por milhões de leitores no mundo
inteiro — entre eles os dos países mais cultos do planeta, como Canadá e
Inglaterra —, que, como está demonstrado, se divertem muito com as notícias
sobre o modo como os ricos, vencedores e famosos deste vale de lágrimas se
casam, se descasam, se recasam, se vestem, se desvestem, brigam, se
reconciliam, gastam milhões, têm caprichos e gostos, desgostos e maus gostos.
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Num de seus últimos artigos, “Não há piedade para Ingrid nem
Clara”,9 Tomás Eloy Martínez indignava-se com o assédio a que os jornalistas da
imprensa marrom submeteram Ingrid Betancourt e Clara Rojas, ao serem
libertadas, depois de seis anos nas selvas colombianas sequestradas pelas FARC,
com perguntas cruéis e estúpidas, como se tinham sido violentadas, se tinham
visto outras prisioneiras serem violentadas, ou — a Clara Rojas — se havia
tentado afogar num rio o filho que tivera com um guerrilheiro. “Esse
jornalismo”, escrevia Tomás Eloy Martínez”, continua se esforçando por
transformar as vítimas em peças de um espetáculo que se apresenta como
informação necessária, mas cuja única função é satisfazer a curiosidade
perversa dos consumidores do escândalo”. Seu protesto era justo, evidentemente.
Seu erro consistia em supor que “a curiosidade perversa dos consumidores do
escândalo” é patrimônio de uma minoria. Não é verdade: essa curiosidade corrói
as vastas maiorias a que nos referimos quando falamos de “opinião pública”.
Essa vocação maledicente, escabrosa e frívola, dá o tom cultural de nosso
tempo, e é sua imperiosa demanda que toda a imprensa, tanto a séria quanto a
descaradamente sensacionalista, se vê obrigada a atender, em graus diversos e
com habilidades e formas diferentes.
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alimento mórbido exigido e reivindicado pela fome de
espanto, que inconscientemente pressiona os meios de comunicação por parte do
público leitor, ouvinte e espectador. Toda
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o Grande Bocejo de que falava Octavio Paz.
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Não está em poder do jornalismo por si só mudar a
civilização do espetáculo, que ele contribuiu para forjar. Essa é uma realidade
enraizada em nosso tempo, a certidão de nascimento das novas gerações, uma
maneira de ser, de viver e talvez de morrer do mundo que nos coube, a nós,
felizes cidadãos destes países, a quem a democracia, a liberdade, as ideias, os
valores, os livros, a arte e a literatura do Ocidente ofereceram o privilégio
de transformar o entretenimento passageiro na aspiração suprema da vida humana
e o direito de contemplar com cinismo e desdém tudo o que aborreça, preocupe e
lembre que a vida não só é diversão, mas também drama, dor, mistério e
frustração.
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Se assim foi, muito bem, sucesso total.
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ver essas pinturas
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Chama-se Seurat e os banhistas e tem como tema o quadro
Banhistas em Asnières, um dos dois mais famosos que aquele artista pintou (o
outro é Uma tarde de domingo na ilha Grande Jatte), entre 1883 e 1884.
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genuína, crítica, representativa e audaz. Direi de imediato
que nesse processo de solapamento da ideia tradicional de cultura surgiram
livros tão sugestivos como o que Mikhail Bakhtin dedicou à Cultura popular na
Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, no qual, com
raciocínios sutis e exemplos saborosos, põe em contraste o que chama de
“cultura popular”, espécie de contraponto à cultura oficial e aristocrática,
segundo o crítico russo.
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A cultura popular satiriza a oficial com réplicas que, por
exemplo, desnudam e exageram o que esta oculta e censura como “infra-humano”,
ou seja, sexo, funções excrementícias, descortesia, opondo o agressivo “mau
gosto” ao suposto “bom gosto” das classes dominantes.
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aqui entra a insustentável leveza doser pra mim...
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Não se deve confundir a classificação formulada por Bakhtin
e outros críticos literários de estirpe sociológica — cultura oficial e cultura
popular — com a divisão há muito existente no mundo anglo-saxão entre highbrow
culture e a lowbrow culture: a cultura da sobrancelha erguida e a de
sobrancelha caída.
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Bakhtin e seguidores (conscientes ou inconscientes) fizeram
algo mais radical: aboliram as fronteiras entre cultura e incultura e
conferiram dignidade relevante ao inculto, garantindo que o que possa haver de
imperícia, vulgaridade e negligência neste âmbito discriminado é compensado por
sua vitalidade, seu humor e pela maneira desinibida e autêntica com que
representa as experiências humanas mais compartilhadas.
==========
viver na confusão de um mundo onde, paradoxalmente, como já
não há maneira de saber o que é cultura, tudo é cultura e nada é cultura.
==========
E entre cultura e especialização há tanta distância quanto
entre o homem de Cro-Magnon e os sibaritas neurastênicos de Marcel Proust.
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não há modo algum de discernir com um mínimo de objetividade
o que é belo em arte e o que não é. Até mesmo falar desse modo já se mostra
obsoleto, pois a própria noção de beleza está tão desacreditada quanto a
clássica ideia de cultura.
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Hierarquias no amplo espectro dos saberes que formam o
conhecimento, uma moral o mais tolerante possível que exija a liberdade e
possibilite a expressão à grande diversidade dos seres humanos, mas seja firme
na rejeição a tudo o que avilte e degrade a noção básica de humanidade e ameace
a sobrevivência da espécie, uma elite não pautada pela razão de nascimento nem
pelo poder econômico ou político, mas pelo esforço, pelo talento e pela obra
realizada, com autoridade moral para estabelecer, de maneira flexível e
renovável, uma ordem de prioridades e importância de valores tanto no espaço
próprio das artes quanto nas ciências e nas técnicas: isso foi cultura nas
circunstâncias e sociedades mais ilustradas que a história conheceu, o que ela
deveria voltar a ser se não quisermos progredir sem rumo, às cegas, como
autômatos, em direção à nossa própria desintegração. Só desse modo a vida iria
sendo cada dia mais digna de ser vivida para a maioria, na busca do sempre
inalcançável anseio por um mundo feliz.
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Posso parecer pessimista, mas minha impressão é de que, com
uma irresponsabilidade tão grande como nossa irreprimível vocação para a
brincadeira e a diversão, fizemos da cultura um daqueles castelos de areia,
vistosos mas frágeis, que se desmancham com a primeira ventania.
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As ocorrências do mundo real já não podem ser objetivas; nascem
minadas em sua verdade e consistência ontológica por esse vírus dissolvente que
é sua projeção nas imagens manipuladas e falsificadas da realidade virtual, as
únicas admissíveis e compreensíveis para uma humanidade domesticada pela
fantasia midiática dentro da qual nascemos, vivemos e morremos (nem mais nem
menos que os dinossauros de Spielberg).
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crítico e a sã rebeldia de crianças e adolescentes. Muitos
mestres, de boa-fé, deram crédito a essa satanização de si mesmos e, pondo
lenha na fogueira, contribuíram para aumentar o estrago, aderindo a algumas das
mais disparatadas consequências da ideologia de maio de 68 no que se refere à
educação, como considerar aberrante a reprovação dos maus alunos, a repetição
de ano e até mesmo a atribuição de notas e o estabelecimento de uma ordem de
preferência no rendimento escolar dos estudantes, pois, fazendo semelhantes
distinções, se propagariam a nefasta noção de hierarquias, o egoísmo, o
individualismo, a negação da igualdade e o racismo. É verdade que esses
extremos não chegaram a afetar todos os setores da vida escolar, mas uma das
perversas consequências do triunfo das ideias — das diatribes e fantasias — de
maio de 68 foi que, como resultado disso, se acentuou brutalmente a divisão de
classes a partir das salas de aula.
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Muitos mestres, de boa-fé, deram crédito a essa satanização
de si mesmos e, pondo lenha na fogueira, contribuíram para aumentar o estrago,
aderindo a algumas das mais disparatadas consequências da ideologia de maio de
68 no que se refere à educação, como considerar aberrante a reprovação dos maus
alunos, a repetição de ano e até mesmo a atribuição de notas e o
estabelecimento de uma ordem de preferência no rendimento escolar dos
estudantes, pois, fazendo semelhantes distinções, se propagariam a nefasta
noção de hierarquias, o egoísmo, o individualismo, a negação da igualdade e o
racismo. É verdade que esses extremos não chegaram a afetar todos os setores da
vida escolar, mas uma das perversas consequências do triunfo das ideias — das
diatribes e fantasias — de maio de 68 foi que, como resultado disso, se
acentuou brutalmente a divisão de classes a partir das salas de aula.
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ligação entre a derrocada da educação e maio de 68
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Também nisso Foucault não esteve só, mas assumiu o preceito
de toda uma geração, que marcaria como ferrete a cultura de seu tempo: a
propensão ao sofisma e ao artifício intelectual. Essa é outra razão da perda de
“autoridade” de muitos pensadores de nosso tempo: não eram sérios, brincavam
com as ideias e as teorias como os malabaristas dos circos brincam com lenços e
clavas, que divertem e até causam admiração, mas não convencem. No campo da
cultura, chegaram a produzir uma curiosa inversão de valores: a teoria, ou
seja, a interpretação chegou a substituir a obra de arte, a tornar-se sua razão
de ser. O crítico importava mais que o artista, era o verdadeiro criador. A
teoria justificava a obra de arte, esta existia para ser interpretada pelo
crítico, era algo assim como uma hipóstase da teoria. Esse endeusamento da
crítica teve o paradoxal efeito de ir afastando cada vez mais a crítica
cultural do grande público, inclusive do público culto, mas não especializado,
e foi um dos fatores mais eficazes da frivolização da cultura de nossos dias.
Aqueles teóricos expunham suas teorias frequentemente com um jargão esotérico,
pretensioso e muitas vezes oco e desprovido de originalidade e profundidade, a
tal ponto que o próprio Foucault, que algumas vezes também incorreu nele, o
chamou de “obscurantismo terrorista”.
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Evidentemente, não faltaram reações críticas às falácias e
aos excessos intelectuais do pós-modernismo. Por exemplo, sua tendência a
proteger-se e obter certa invulnerabilidade para suas teorias valendo-se de
linguagem científica sofreu duro revés quando dois cientistas de verdade, os professores
Alan Sokal e Jean Bricmont, publicaram em 1998 Imposturas intelectuais, uma
contundente demonstração do uso irresponsável, inexato e muitas vezes
cinicamente fraudulento das ciências, presente em ensaios de filósofos e
pensadores tão prestigiados como Jacques Lacan, Julia Kristeva, Luce Irigaray,
Bruno Latour, Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Paul Virilio,
entre outros.
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Outra crítica severa às teorias e teses da moda pós-moderna
foi Gertrude Himmelfarb, que, numa polêmica coleção de ensaios intitulada On
Looking Into the Abyss [Olhando o abismo] (Nova York, Alfred A. Knopf, 1994),
investiu contra aquelas e, sobretudo, contra o estruturalismo de Michel
Foucault e o desconstrucionismo de Jacques Derrida e Paul de Man, correntes de
pensamento que lhe pareciam vazias, se comparadas com as escolas tradicionais
de crítica literária e histórica.
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Seu livro é também uma homenagem a Lionel Trilling, autor de
The liberal imagination (1950) e de muitos outros ensaios sobre cultura, que
exerceram grande influência na vida intelectual e acadêmica do pós-guerra nos
Estados Unidos e na Europa, hoje lembrado por poucos e quase não lido.
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ninguém se dá nem o trabalho de refutá-las. A professora
Himmelfarb mostra que, apesar dos poucos anos que separam a geração de Lionel
Trilling das de Derrida ou Foucault, há um verdadeiro abismo intransponível
entre aquele, convicto de que a história humana é uma só, o conhecimento é uma
empresa totalizadora, o progresso é uma realidade possível, e a literatura é
uma atividade da imaginação com raízes na história e projeções na moral, e os
que relativizaram as noções de verdade e valor até as transformarem em ficções,
entronizando como axioma que todas as culturas se equivalem, dissociando
literatura de realidade e confinando-a num mundo autônomo de textos que remetem
a outros textos sem nunca se relacionarem com a experiência vivida.
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Toda vez que enfrentei a prosa obscurantista e as
asfixiantes análises literárias ou filosóficas de Jacques Derrida tive a
sensação de estar perdendo miseramente o meu tempo. Não por acreditar que todo
ensaio de crítica deva ser útil — se for divertido ou estimulante me basta —,
mas porque, se a literatura for o que ele supõe — uma sucessão ou arquipélago
de textos autônomos, impermeabilizados, sem contato possível com a realidade
exterior, portanto imunes a qualquer valoração e inter-relação com o
desenvolvimento da sociedade e o comportamento individual —, qual é a razão de
desconstruí-los? Para que esses laboriosos esforços de erudição, de arqueologia
retórica, essas árduas genealogias linguísticas, aproximando ou distanciando um
texto de outro até constituir essas artificiosas desconstruções intelectuais
que são como que vazios animados? Há uma incongruência absoluta no labor
crítico que começa proclamando a inépcia essencial da literatura para influir
na vida (ou para sofrer sua influência) e para transmitir verdades de qualquer
índole, associáveis à problemática humana, e depois se dedica com tanto afã a
esmiuçar esses monumentos de palavras inúteis, frequentemente com uma
ostentação intelectual insuportavelmente pretensiosa.
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Esse ensaio de Lionel Trilling sobre o ensino da literatura
eu reli várias vezes, principalmente quando precisei atuar como professor. É
verdade que há algo de enganoso e paradoxal em reduzir a uma exposição
pedagógica, com ares inevitavelmente esquemáticos e impessoais, e a deveres
escolares que, ainda por cima, é preciso conceituar, obras de imaginação que
nasceram de experiências profundas e, às vezes, dilacerantes, com verdadeiras
imolações humanas, cuja autêntica valoração não pode ser feita na tribuna de um
auditório, mas na ensimesmada intimidade da leitura, e só pode ser cabalmente
medida pelos efeitos e repercussões que têm na vida pessoal do leitor.
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destaque interessante pra professores de literatura
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Não me lembro de nenhum professor meu de literatura que me
fizesse sentir que um bom livro nos aproxima do abismo da experiência humana e
de seus efervescentes mistérios. Os críticos literários, em compensação, sim.
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convicção de que o pior e o melhor da aventura humana sempre
passam pelos livros, e de que eles ajudam a viver.
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contagiando-me com sua convicção de que o pior e o melhor da
aventura humana sempre passam pelos livros, e de que eles ajudam a viver.
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ideias socialistas e sua literatura, desde que Michelet
descobriu Vico até a chegada de Lenin a São Petersburgo, Rumo à estação
Finlândia, caiu em minhas mãos no tempo de estudante.
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Têm razão Alain Finkielkraut, Élisabeth Badinter, Régis
Debray, Jean-François Revel e os que estão com eles nessa polêmica: o véu
islâmico deve ser proibido nas escolas públicas francesas em nome da liberdade.
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No final de 2009 houve um pequeno alvoroço midiático na
Espanha quando se descobriu que a Junta da Extremadura, em poder dos
socialistas, organizara, dentro de seu plano de educação sexual dos escolares,
oficinas de masturbação para meninos e meninas a partir dos 14 anos, campanha
que foi batizada, não sem sagacidade, de O prazer está em suas mãos.
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sexo só é saudável e normal entre os animais. Foi assim
entre os bípedes quando ainda não éramos totalmente humanos, ou seja, quando o
sexo era para nós desafogo do instinto e pouco mais que isso, descarga física
de energia que garantia a reprodução. A desanimalização da espécie foi um longo
e complicado processo, e nele teve papel decisivo o que Karl Popper chama de
“mundo terceiro”, o da cultura e da invenção, o lento surgimento do indivíduo
soberano, sua emancipação da tribo, com tendências, disposições, desígnios,
anseios e desejos que o diferenciavam dos outros e o constituíam como ser único
e intransferível. O sexo desempenhou papel importantíssimo na criação do
indivíduo e, como mostrou Sigmund Freud, nesse domínio, o mais recôndito da
soberania individual, são forjados os caracteres distintivos de cada
personalidade, o que nos pertence como próprio e nos faz diferentes dos outros.
Esse é um domínio privado e secreto, e deveríamos procurar fazer de tudo para
que continue assim, se não quisermos obstruir uma das fontes mais intensas de
prazer e criatividade, ou seja, da civilização.
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Georges Bataille não se equivocava quando alertou para os
riscos da permissividade desenfreada em matéria sexual.
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Descobri que o erotismo está inseparavelmente unido à
liberdade humana, mas também à violência, ao ler os grandes mestres da
literatura erótica que Guillaume Apollinaire reuniu na coleção que organizou
(prefaciando e traduzindo alguns de seus volumes) com o título Les maîtres de
l’amour.
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Ali descobri com felicidade, dissimulada atrás de uns
discretos biombos e de umas cortininhas pudibundas, uma esplêndida coleção de
livros eróticos, quase todos franceses. Ali eu li as cartas e fantasias
eróticas de Diderot e Mirabeau, o marquês de Sade e Restif de la Bretonne,
Andréa de Nerciat, Aretino, Memórias de uma cantora alemã, Autobiografia de um
inglês, Memórias de Casanova, Ligações perigosas de Choderlos de Laclos e não
sei quantos outros livros clássicos e emblemáticos da literatura erótica.
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A literatura erótica torna-se pornografia por razões
estritamente literárias: o descuido das formas. Ou seja, quando a negligência
ou a inabilidade do escritor ao utilizar a linguagem, construir a história,
desenvolver diálogos e descrever situações revela, involuntariamente, tudo o
que há de reles e repulsivo num acasalamento sexual isento de sentimento e
elegância — de mise-en-scène e de ritual —, convertido em mera satisfação do
instinto reprodutor.
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Esse livro confirma o que toda literatura centrada no sexual
mostrou à saciedade: separado das demais atividades e funções que constituem a
existência, o sexo é extremadamente monótono, de um horizonte tão limitado que
no final acaba sendo desumanizador. Uma vida imantada pelo sexo, e só por ele,
rebaixa essa função a uma atividade orgânica primária, que não é mais nobre nem
prazenteira que comer por comer, ou defecar. Só quando a cultura o civiliza e o
carrega de emoção e paixão, quando o reveste de cerimônias e rituais, o sexo
enriquece extraordinariamente a vida humana, e seus efeitos benéficos se
projetam por todas as brenhas da existência. Para que essa sublimação ocorra é
imprescindível, como explicou Georges Bataille, que se preservem certos tabus e
regras que canalizem e freiem o sexo, de modo que o amor físico possa ser
vivido — gozado — como uma transgressão. A liberdade irrestrita e a renúncia à
teatralidade e ao formalismo em seu exercício não contribuíram para enriquecer
o prazer e a felicidade dos seres humanos graças ao sexo, mas, ao contrário,
para banalizá-lo, convertendo em mero passatempo o amor físico, uma das fontes
mais férteis e enigmáticas do fenômeno humano.
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Hoje em dia, em todas as pesquisas sobre política uma
maioria significativa de cidadãos opina que se trata de atividade medíocre e
suja, que repele os mais honestos e capazes e recruta sobretudo nulidades e
malandros que a veem como uma maneira rápida de enriquecer. Isso não ocorre
apenas no Terceiro Mundo. O desprestígio da política em nossos dias não conhece
fronteiras, e isso obedece a uma realidade incontestável: com variantes e
matizes próprios de cada país, em quase todo o mundo, tanto no adiantado como
no subdesenvolvido, o nível intelectual, profissional e sem dúvida também moral
da classe política decaiu. Isso não é privativo das ditaduras. As democracias
sofrem esse mesmo desgaste, e sua consequência é o desinteresse pela política,
demonstrado pelo grau de abstenções nos processos eleitorais, algo tão
frequente em quase todos os países. As exceções são raras. Provavelmente já não
restam sociedades nas quais o fazer cívico atraia os melhores.
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jornalismo escandaloso é um perverso enteado da cultura da
liberdade. Não pode ser suprimido sem que se inflija ferimento mortal à
liberdade de expressão.
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jornalismo escandaloso é um perverso enteado da cultura da
liberdade. Não pode ser suprimido sem que se inflija ferimento mortal à
liberdade de expressão.
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O jornalismo escandaloso é um perverso enteado da cultura da
liberdade. Não pode ser suprimido sem que se inflija ferimento mortal à
liberdade de expressão.
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avanço da tecnologia audiovisual e dos meios de comunicação,
que serve para contrapor-se aos sistemas de censura e controle nas sociedades
autoritárias, deveria ter aperfeiçoado a democracia e incentivado a
participação na vida pública. Mas teve efeito contrário, porque em muitos casos
a função crítica do jornalismo foi distorcida pela frivolidade e pela avidez de
diversão da cultura reinante. Ao expor ao público, em suas pequenezas e
misérias, a intimidade da vida política e diplomática, como fez o Wikileaks de
Julian Assange, o jornalismo contribuiu para despojar de respeitabilidade e
seriedade uma atividade que, no passado, conservava certa aura mítica, de
espaço fecundo para o heroísmo civil e para as iniciativas audazes a favor dos
direitos humanos, da justiça social, do progresso e da liberdade. Em muitas
democracias, como consequência da frenética busca do escândalo e da
bisbilhotice barata que se encarniça com os políticos, o que o grande público
conhece melhor sobre eles é o que de pior eles podem mostrar. E o que mostram
é, em geral, a mesma atividade penosa em que nossa civilização transforma tudo
o que toca: uma comédia de fantoches capazes de lançar mão das piores
artimanhas para ganhar o favor de um público ávido de diversão.
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raiz do fenômeno está na cultura. Ou melhor, na banalização
lúdica da cultura imperante, em que o valor supremo é agora divertir-se e
divertir, acima de qualquer outra forma de conhecimento ou ideal. As pessoas
abrem um jornal, vão ao cinema, ligam a tevê ou compram um livro para se
entreter, no sentido mais ligeiro da palavra, não para martirizar o cérebro com
preocupações, problemas, dúvidas. Só para distrair-se, esquecer-se das coisas
sérias, profundas, inquietantes e difíceis, e entregar-se a um devaneio
ligeiro, ameno, superficial, alegre e sinceramente estúpido.
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Desde que comecei a ler os livros e os artigos de Fernando
Savater — deve fazer uns trinta anos — ocorre-me com ele algo que não me ocorre
com nenhum outro escritor de minha preferência: quase nunca discordo de seus
julgamentos e críticas.
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A severíssima condenação por parte do papa Bento XVI dos
Legionários de Cristo, declarando sua reorganização integral, e de seu
fundador, o padre Marcial Maciel, mexicano, bígamo, incestuoso, vigarista,
estuprador de meninos e meninas, inclusive de um de seus próprios filhos —
personagem que parece saído dos romances do marquês de Sade —, não dissipa as
sombras que tudo isso lançou sobre uma das mais importantes religiões do mundo.
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Por outro lado, a ofensiva missionária protestante na
América Latina e em outras regiões do Terceiro Mundo é enorme, decidida e
obteve resultados notáveis. Em muitos lugares afastados e marginalizados, de
extrema pobreza, as igrejas evangélicas ocuparam o lugar do catolicismo, que,
por falta de sacerdotes ou por esmorecimento do fervor missionário, cedeu
terreno às impetuosas igrejas protestantes. Estas têm boa acolhida entre as mulheres
por proibir o álcool e pela exigência de dedicação constante às práticas
religiosas por parte dos conversos, o que contribui para a estabilidade das
famílias e mantém os maridos afastados de bares e bordéis.
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Todos creem que, por mais equitativa que seja a lei, por
mais respeitável que seja o corpo de magistrados encarregados de administrar a
justiça, ou por mais honrados e dignos que sejam os governos, a justiça nunca
chega a ser uma realidade tangível e ao alcance de todos, que defenda o
indivíduo comum, o cidadão anônimo, de abusos, desrespeito e discriminação por
parte dos poderosos. Por isso, não é de estranhar que a religião e as práticas
religiosas estejam mais arraigadas nas classes e nos setores mais
desfavorecidos da sociedade, aqueles que, por sua pobreza e vulnerabilidade,
mais sofrem abusos e vexames de todos os tipos que, de modo geral, permanecem
impunes. Suporta melhor a pobreza, a discriminação, a exploração e o
desrespeito quem acredita que após a morte haverá desagravo e reparação para
tudo isso. (Por esse motivo Marx chamou a religião de “ópio do povo”, droga que
anestesia o espírito rebelde dos trabalhadores e possibilita que seus senhores
vivam tranquilos a explorá-los.)
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Pouquíssimos seres humanos são capazes de aceitar a ideia do
“absurdo existencialista” de estarmos “lançados” aqui no mundo por obra de um
acaso incompreensível, um acidente estelar, de nossa vida ser mera casualidade
desprovida de ordem e coerência, de tudo o que ocorra ou deixe de ocorrer com
ela depender exclusivamente de nossa conduta e vontade e da situação social e
histórica em que nos achamos inseridos. Essa ideia, que Albert Camus descreveu
em O mito de Sísifo com lucidez e serenidade, da qual extraiu belas conclusões
sobre a beleza, a liberdade e o prazer, é capaz de submergir o comum dos
mortais na anomia, na paralisia e no desespero.
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As Cruzadas, a Inquisição, o Index são outros tantos
símbolos da intransigência, do dogmatismo e da ferocidade com que a Igreja
combateu a liberdade intelectual, científica e artística, assim como das duras
batalhas que os grandes lutadores precisaram travar pela liberdade nos países
católicos.
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Por outro lado, nas atividades criativas e, digamos, não
práticas, o capitalismo provoca uma confusão total entre preço e valor, de que
este último sempre sai prejudicado, algo que, no curto ou longo prazo, leva à
degradação da cultura e do espírito, que é a civilização do espetáculo. O mercado
livre fixa os preços dos produtos em função da oferta e da demanda, e por isso
em quase todos os lugares, inclusive nas sociedades mais cultas, obras
literárias e artísticas de altíssimo valor ficam diminuídas e são deixadas de
lado, em virtude de sua dificuldade e da exigência de certa formação
intelectual e de uma sensibilidade aguçada para serem totalmente apreciadas.
Como contrapartida tem-se que, quando o gosto do grande público determina o
valor de um produto cultural, é inevitável que, em muitíssimos casos,
escritores, pensadores e artistas medíocres ou nulos, mas vistosos e
pirotécnicos, espertos na publicidade e na autopromoção ou hábeis em acalentar
os piores instintos do público, atinjam altíssimos níveis de popularidade,
pareçam ser os melhores à maioria inculta, e suas obras sejam as mais cotadas e
divulgadas. Isso, na esfera da pintura, por exemplo, como vimos, levou ao ponto
de as obras de verdadeiros embusteiros alcançarem preços vertiginosos, graças
às modas e à manipulação do gosto dos colecionadores por galeristas e críticos.
Tais coisas induziram pensadores como Octavio Paz a condenar o mercado e a
afirmar que ele foi o grande responsável pela bancarrota da cultura na
sociedade contemporânea.
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Todos os grandes pensadores liberais, de John Stuart Mill a
Karl Popper, passando por Adam Smith, Ludwig von Mises, Friedrich Hayek, Isaiah
Berlin e Milton Friedman, ressaltaram que a liberdade econômica e política só
cumpre cabalmente sua função civilizadora, criadora de riqueza e de empregos,
defensora do indivíduo soberano, da vigência da lei e do respeito aos direitos
humanos, quando a vida espiritual da sociedade é intensa, mantém viva e inspira
uma hierarquia de valores respeitada e acatada pelo corpo social. Segundo eles,
esse é o melhor modo de fazer desaparecer ou pelo menos atenuar a ruptura entre
preço e valor.
==========
O uso do véu ou das túnicas que cobrem parcial ou
inteiramente o corpo da mulher não deveria ser objeto de debate numa sociedade
democrática. Acaso nela não existe liberdade? Que tipo de liberdade é esse que
impediria uma menina ou uma jovem de vestir-se de acordo com as prescrições de
sua religião ou com seu capricho? Contudo, não é nada indubitável que o uso do
véu ou da burca seja uma decisão livremente tomada pela menina, jovem ou
mulher, que os usa. É muito provável que ela os use não por gosto nem por um
ato livre e pessoal, mas sim como símbolo da condição que a religião islâmica
impõe à mulher, ou seja, de absoluta servidão ao pai ou ao marido. Nessas
condições, o véu e a túnica deixam de ser apenas peças de vestuário e se
transformam em emblemas da discriminação que cerca a mulher ainda em boa parte
das sociedades muçulmanas. Um país democrático, em nome do respeito às crenças
e culturas, deve tolerar que em seu seio continuem existindo instituições e
costumes (ou melhor, preconceitos e estigmas) que a democracia aboliu há
séculos à custa de grandes lutas e sacrifícios? A liberdade é tolerante, mas
não pode sê-lo para aqueles que, com sua conduta, a neguem, escarneçam dela e,
afinal de contas, queiram destruí-la. Em muitos casos, o emprego de símbolos
religiosos como a burca e o hijab, usados pelas meninas muçulmanas nos
colégios, é mero desafio à liberdade que a mulher alcançou no Ocidente,
liberdade que gostariam de cercear, obtendo concessões e constituindo enclaves
soberanos no seio de uma sociedade aberta. Isso significa que, por trás do
traje aparentemente inócuo, espreita uma ofensiva que pretende obter direitos
para práticas e comportamentos incompatíveis com a cultura da liberdade.
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O uso do véu ou das túnicas que cobrem parcial ou
inteiramente o corpo da mulher não deveria ser objeto de debate numa sociedade
democrática. Acaso nela não existe liberdade? Que tipo de liberdade é esse que
impediria uma menina ou uma jovem de vestir-se de acordo com as prescrições de
sua religião ou com seu capricho? Contudo, não é nada indubitável que o uso do
véu ou da burca seja uma decisão livremente tomada pela menina, jovem ou
mulher, que os usa. É muito provável que ela os use não por gosto nem por um ato
livre e pessoal, mas sim como símbolo da condição que a religião islâmica impõe
à mulher, ou seja, de absoluta servidão ao pai ou ao marido. Nessas condições,
o véu e a túnica deixam de ser apenas peças de vestuário e se transformam em
emblemas da discriminação que cerca a mulher ainda em boa parte das sociedades
muçulmanas. Um país democrático, em nome do respeito às crenças e culturas,
deve tolerar que em seu seio continuem existindo instituições e costumes (ou
melhor, preconceitos e estigmas) que a democracia aboliu há séculos à custa de
grandes lutas e sacrifícios? A liberdade é tolerante, mas não pode sê-lo para
aqueles que, com sua conduta, a neguem, escarneçam dela e, afinal de contas,
queiram destruí-la. Em muitos casos, o emprego de símbolos religiosos como a
burca e o hijab, usados pelas meninas muçulmanas nos colégios, é mero desafio à
liberdade que a mulher alcançou no Ocidente, liberdade que gostariam de
cercear, obtendo concessões e constituindo enclaves soberanos no seio de uma
sociedade aberta. Isso significa que, por trás do traje aparentemente inócuo,
espreita uma ofensiva que pretende obter direitos para práticas e
comportamentos incompatíveis com a cultura da liberdade. A imigração é
indispensável para os países desenvolvidos que queiram assim continuar e,
também por essa razão prática, eles devem favorecê-la e acolher trabalhadores
de línguas e crenças distintas. Evidentemente, um governo democrático deve
facilitar para essas famílias imigrantes a preservação da religião e dos
costumes. Mas desde que estes não firam os princípios e as leis do Estado de
direito. Este não admite a discriminação nem a submissão da mulher a uma
servidão que faz tábua rasa de seus direitos humanos. Uma família muçulmana
numa sociedade democrática tem a mesma obrigação das famílias oriundas dessa
sociedade a ajustar sua conduta às leis vigentes, mesmo quando estas
contradizem costumes e comportamentos inveterados de seus lugares de origem.
Esse é o contexto no qual sempre se deve situar o debate sobre o véu, a burca e
o hijab. Assim se entenderia melhor a decisão da França, justa e democrática em
minha opinião, de proibir categoricamente o uso do véu ou de qualquer outra
forma de uniforme religioso para as meninas nas escolas públicas.
==========
Termino com uma nota pessoal um tanto melancólica. De alguns
anos para cá, sem que eu percebesse muito bem no início, ao visitar exposições,
assistir a alguns espetáculos, ver certos filmes, peças de teatro ou programas
de televisão, ler certos livros, revistas e jornais, passei a ser assaltado
pela incômoda sensação de que estavam gozando da minha cara e não havia como me
defender diante de uma conspiração esmagadora e sutil para fazer que eu me
sentisse inculto ou estúpido.
==========
Tais questões se refratam nestas páginas através da
experiência de alguém que, desde que descobriu a aventura espiritual através
dos livros, sempre teve por modelo aquelas pessoas que se moviam com
desenvoltura no mundo das ideias e tinham claros alguns valores estéticos que
lhes permitiam opinar com segurança sobre o que era bom e ruim, original ou
imitação, revolucionário ou rotineiro, tanto em literatura quanto em artes
plásticas, filosofia e música. Muito consciente das deficiências de minha
formação, durante toda a vida procurei suprir esses vazios, estudando, lendo,
visitando museus e galerias, indo a bibliotecas, conferências e concertos.
==========
Não havia nisso sacrifício algum. Havia, sim, o imenso
prazer de ir descobrindo como meu horizonte intelectual se ampliava, pois
entender Nietzsche ou Popper, ler Homero, decifrar o Ulisses de Joyce, degustar
a poesia de Góngora, Baudelaire, T. S. Eliot, explorar o universo de Goya,
Rembrandt, Picasso, Mozart, Mahler, Bartók, Tchekhov, O’Neill, Ibsen, Brecht,
enriquecia extraordinariamente minha fantasia, meus apetites e minha
sensibilidade.
==========
Ali, ao longo de dois anos, escreveu o polêmico livro que o
tornou famoso. Intitula-se em inglês The Shallows: What the Internet is Doing
to Our Brains e em espanhol: Superficiales: ¿Qué está haciendo Internet con
nuestras mentes? (Taurus, 2011).15 Acabo de lê-lo de uma tacada só e fiquei
fascinado, assustado e entristecido.
==========
Não é estranho, por isso, que alguns fanáticos da web, como
o professor Joe O’Shea, filósofo da Universidade da Flórida, afirmem:
“Sentar-se e ler um livro de cabo a rabo não tem sentido. Não é um bom uso de
meu tempo, já que posso ter toda a informação que quiser com maior rapidez
através da web. Quando alguém se torna caçador experiente na internet, os
livros são supérfluos.” O que há de atroz nessa frase não é a afirmação final,
mas o fato de o filósofo em questão acreditar que as pessoas leem livros só
para “informar-se”. Esse é um dos estragos que o vício frenético na telinha
pode causar. Daí a patética confissão da doutora Katherine Hayles, professora
de Literatura da Universidade de Duke: “Já não consigo fazer meus alunos lerem
livros inteiros.”
==========
Mas devemos nos preocupar se esse progresso significar
aquilo que um erudito estudioso dos efeitos da internet em nosso cérebro e em
nossos costumes, Van Nimwegen, deduziu depois de um de seus experimentos: que
deixar por conta dos computadores a solução de todos os problemas cognitivos
reduz “a capacidade do cérebro de construir estruturas estáveis de
conhecimentos”. Em outras palavras: quanto mais inteligente nosso computador,
mais burros seremos.
==========
Este contexto gerou uma situação de privilégio para a
palavra escrita e seu principal expoente, a literatura. Tem ela a oportunidade,
eu quase diria a obrigação — já que pode, sim — de ser problemática, “perigosa”
(como acreditam os ditadores e os fanáticos), agitadora de consciências,
inconformista, preocupante, crítica, empenhada, segundo o refrão, em cutucar
com vara curta o que sabe ser uma onça. Há um vazio por preencher, e os meios
audiovisuais não estão em condições nem têm permissão para preenchê-lo
totalmente. Esse trabalho deverá ser feito, se não quisermos que o mais
precioso bem de que gozamos (as minorias que gozamos dele) — a cultura da
liberdade, a democracia política — se deteriore e sucumba, por omissão de seus
beneficiários.
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A liberdade é um bem precioso, mas não está garantida a
nenhum país e a nenhuma pessoa que não saiba assumi-la, exercitá-la e
defendê-la. A literatura, que respira e vive graças a ela, que sem ela asfixia,
pode levar a compreender que a liberdade não é uma dádiva do céu, mas escolha,
convicção, prática e ideias que devem ser enriquecidas e postas à prova o tempo
todo.
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Em seus anos de exílio na França, quando a Europa inteira ia
caindo diante do avanço dos exércitos nazistas, que pareciam irresistíveis, um
homem das letras, nascido em Berlim, Walter Benjamin, estudava diligentemente a
poesia de Charles Baudelaire. Escrevia um livro sobre ele, que nunca foi
terminado, do qual deixou alguns capítulos que hoje lemos com a fascinação que
em nós produzem os mais fecundos ensaios. Por que Baudelaire? Por que esse
tema, naquele momento sombrio? Lendo-o, descobrimos que em Les Fleurs du Mal
havia respostas para inquietantes interrogações feitas à vida do espírito e do
intelecto pelo desenvolvimento de uma cultura urbana, pela situação do
indivíduo e seus fantasmas numa sociedade massificada e despersonalizada com o
crescimento industrial, pela orientação que a literatura, a arte, o sonho e os
desejos humanos adotariam naquela nova sociedade. A imagem de Walter Benjamin
inclinado sobre Baudelaire enquanto se fechava em torno de sua pessoa o cerco
que acabaria por afogá-lo é tão comovedora como a do filósofo Karl Popper, que,
naqueles mesmos anos, em seu exílio no outro lado do mundo, Nova Zelândia,
punha-se a aprender grego clássico e a estudar Platão, como — as palavras são
suas — contribuição pessoal para a luta contra o totalitarismo. Assim nasceria
esse livro fundamental, A sociedade aberta e seus inimigos.
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Embora as limitações e os erros que este ensaio possa ter
sejam só meus, seus eventuais acertos devem muito às sugestões de três amigos
generosos que leram o manuscrito; quero citá-los e agradecer-lhes: Verónica
Ramírez Muro, Jorge Manzanilla e Carlos Granés.
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expressão”, na verdade se documentava a terrível orfandade de ideias, cultura artística, habilidade artesanal, autenticidade e integridade que caracteriza boa parte das artes plásticas em nossos dias.
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