Marcações#4 A Menina Submersa - Caitlín R. Kiernan

Eis as marcações e notas que fiz no Kindle:

A Menina Submersa (Caitlín R. Kiernan)

pois a verdade na propaganda traz prejuízo.
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Não tinha percebido que também sou louca – e que provavelmente sempre havia sido – até alguns anos depois da morte de Rosemary. É um mito que pessoas loucas não saibam que são loucas. Sem dúvida, muitos de nós são capazes de epifanias e introspecção como qualquer outra pessoa, talvez até mais. Suspeito que passamos muito mais tempo pensando sobre nossos pensamentos do que as pessoas sãs.
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eu sofria de esquizofrenia desorganizada, que também é chamada de hebefrenia, por causa de Hebe, a deusa grega da juventude. Ela (a psiquiatra) não me contou sobre a última parte. Eu descobri sozinha. A hebefrenia recebeu o nome da deusa grega da juventude porque tende a se manifestar na puberdade.
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diagnóstico mudou para esquizofrenia paranoica, que não recebeu seu nome de nenhum deus grego,
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Eu sou doida porque Rosemary era doida e teve uma filha, e Rosemary era doida porque minha avó era doida e teve uma filha (bem, teve alguns filhos, mas somente Rosemary deu azar e pegou a maldição).
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Há muitas sobreposições, eventos demais que uma ou outra iniciou, de propósito ou não, e não faz sentido fazer isso, se tudo com que eu posso lidar é uma mentira. O que não significa dizer que cada palavra será factual. Apenas que cada palavra será verdadeira. Ou tão verdadeira quanto eu consiga.
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Parecia justo ir até a parte sobre ser louca antes de qualquer coisa, como um aviso; portanto, se alguém chegar a ler isto, saberá que não deve acreditar piamente em tudo.
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Nunca vou à igreja, porque minha mãe era uma católica não praticante e sempre dizia que era melhor ficar longe do catolicismo, na pior das hipóteses, porque isso significava que eu nunca teria de passar pelo drama de, no fim, não praticar. — Nós não acreditamos em Deus? – talvez eu tenha perguntado a ela em algum momento. — Eu não acredito em Deus, Imp. Em que você vai acreditar, cabe a você. Você tem de prestar atenção e resolver essas coisas sozinha. Eu não vou fazer isso por você.
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Quer dizer, se é que essa conversa realmente aconteceu. Quase parece que sim, quase, mas um monte de lembranças minhas são falsas, por isso nunca posso ter certeza, de um jeito ou de outro. Muitas das minhas lembranças mais interessantes parecem nunca ter acontecido.
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Isso costumava me apavorar, essas lembranças de coisas que nunca aconteceram, mas me acostumei.
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Fantasmas são essas lembranças fortes demais para serem esquecidas, ecoando ao longo dos anos e se recusando a serem apagadas pelo tempo.
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Claro que eu nunca conheci uma pessoa inocente. No fim das contas, todo mundo machuca alguém, por mais que tente não machucar.
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Obviamente, decidi que continuaria. Essa é outra forma de ser assombrada: começar algo e nunca terminar. Não deixo pinturas inacabadas. Se começo a ler um livro, tenho de terminar, mesmo que eu o odeie. Não desperdiço comida. Quando decido dar uma volta e planejo que caminho seguir, insisto em caminhar até o fim, mesmo se começar a nevar ou chover. Caso contrário, tendo a brigar com a coisa inacabada que fica me assombrando.
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De qualquer forma, ela me mostrou como jogar alguns jogos. Em um deles, você era um soldado alienígena combatendo uma invasão alienígena, e tinha uma garota azul holográfica. Em outro, você era um soldado que estava tentando impedir os terroristas de usarem armas nucleares. — Todos eles são violentos? – perguntei. — Todos os personagens principais são do sexo masculino? Todos os jogos são sobre guerra?
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Ninguém nunca dissera que você tinha de estar morto e enterrado para ser um fantasma. Ou, se alguém disse, estava errado. As pessoas que acreditavam nisso provavelmente nunca foram assombradas. Ou somente tiveram uma experiência muito limitada com fantasmas, por isso simplesmente não sabem de nada. Abalyn dormiu no sofá aquela noite, e eu, na cama.
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Saltonstall e Albert Perrault, assim como Eva Canning. Ninguém nunca dissera que você tinha de estar morto e enterrado para ser um fantasma. Ou, se alguém disse, estava errado. As pessoas que acreditavam nisso provavelmente nunca foram assombradas. Ou somente tiveram uma experiência muito limitada com fantasmas, por isso simplesmente não sabem de nada. Abalyn dormiu no sofá aquela noite, e eu, na cama.
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Ninguém nunca dissera que você tinha de estar morto e enterrado para ser um fantasma. Ou, se alguém disse, estava errado. As pessoas que acreditavam nisso provavelmente nunca foram assombradas. Ou somente tiveram uma experiência muito limitada com fantasmas, por isso simplesmente não sabem de nada.
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“Dualidade. A mutabilidade da carne. Transição. Ter de esconder o seu eu verdadeiro. Máscaras. Segredos. Sereias, lobisomens, gênero. As reações que podemos ter diante da verdade das coisas, diante da expressão mais sincera de alguém, diante de fatos que ocorrem contra as nossas expectativas e os nossos preconceitos. Confissões. Metáforas. Transformação. Por isso, é muito relevante. Não apenas uma conversa casual na hora do café. Não deixe nada relevante de fora, por mais trivial que possa parecer.”
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comecei a entender por que Abalyn vivia do jeito que vivia, escrevendo resenhas de videogames e evitando um local de trabalho convencional. Ela se sentia segura e isolada na frente da tela do monitor ou da televisão, sem que olhos curiosos, indesejados a estudassem e tirassem conclusões desinformadas e desagradáveis. Eu jamais a invejaria por essa privacidade. Nunca.
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a namorada dela é uma doll maker
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Voltamos para a casa dela e, enquanto eu tentava entender o dever de casa de matemática, depois de lhe contar sobre a Resusci Anne, ela me falou sobre l’Inconnue de la Seine. — O boneco tem um rosto bem marcante, não tem? – ela perguntou para mim, e tive de pensar sobre a pergunta durante um minuto. — Não é apenas um rosto genérico antigo – acrescentou Caroline. — Não é como o rosto de alguém que foi criado, mas é um rosto que deve ter sido de um ser humano real. – Quando olho para trás, percebo que ela estava certa, e eu lhe disse isso. — Bem, é porque ele não é um rosto inventado – disse ela. E então me contou a história de uma garota que se afogou e fora encontrada flutuando no rio Sena nos anos 1880 ou 1890. O corpo foi descoberto perto do cais do Louvre e levado para o necrotério de Paris. — A mulher era muito bonita – disse Caroline. — Ela era linda. Mesmo depois de todo aquele tempo no rio, ela ainda era linda. Um dos assistentes do necrotério ficou tão impressionado com ela que fez uma máscara mortuária. Cópias do rosto da garota bonita foram vendidas, centenas e centenas delas. Quase todo o mundo na Europa conhecia aquele rosto, mesmo que ninguém soubesse quem ela havia sido. Ela poderia ter sido qualquer pessoa. Talvez uma garota que vendesse flores, uma costureira ou uma pedinte, mas sua identidade ainda é um mistério. Ninguém apareceu para reclamar o corpo.
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“Nada é sempre objetivo”, Imp datilografou, “embora a gente perca grande parte da verdade fingindo que é.”
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— A linguagem é um meio de comunicação pobre do jeito que está – falei para ela. — Por isso deveríamos usar todas as palavras que temos. Não era um pensamento original; eu estava parafraseando Spencer Tracy em O Vento Será Tua Herança.
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Eu não poderia começar a imaginar quantas horas passei perambulando entre as prateleiras altas e as seções estreitas, ou perdida em um ou outro exemplar na sala de leitura no primeiro andar. Abrigada ali, no interior da concha protetora de pedra clara, a biblioteca parece tão preciosa e frágil quanto alguém de 90 anos. Seu cheiro é a mistura de fragrância de mofo de páginas amareladas, poeira e madeira velha. Para mim, são os cheiros de conforto e segurança. Cheiro de coisa sagrada.
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— Não lembro, Imp, mas não faz diferença. Um monte de coisas é verdade, mas ninguém se importa em escrever nos livros. As vidas são preenchidas com coisas verdadeiras, coisas que realmente aconteceram e praticamente nenhuma aparece nos livros.
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Eu tinha hora marcada hoje com a dra. Ogilvy. Não contei a ela que estou escrevendo todas essas coisas, embora tenhamos conversado algumas vezes sobre Eva Canning: a Eva de julho e a Eva de novembro, assim como falamos sobre Phillip George Saltonstall e A Menina Submersa (a pintura e o folclore) e “A Pequena Sereia”. Assim como conversamos sobre Albert Perrault e O Voyeur da Destruição Absoluta (em Retrospecto) e “Chapeuzinho Vermelho”. Não tenho ideia ainda se vou contar a ela que estou escrevendo esta história de fantasmas. Talvez ela pedisse para ler e eu teria de dizer não. Talvez ela perguntasse se estou sendo literal quando digo “história de fantasmas” ou se estou sendo metafórica e eu teria de dizer que estou sendo muito literal. Essas coisas a deixariam preocupada. Acho que a conheço muito bem para saber que deixariam. Preocupada, quero dizer. Para alguém que não gosta de causar alarme em outras pessoas, com certeza já fiz mais que a parte que me cabe.
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Também me ocorreu que talvez eu não tenha, até agora, contado mais sobre ela ou sobre nós porque, nesta primeira versão da minha história de fantasmas, não estávamos juntas muito antes de Eva chegar e Abalyn ir embora. Então, nesta versão, eu realmente não tive a chance de conhecê-la muito bem e não há muito o que contar sobre nós.
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Também me ocorreu que talvez eu não tenha, até agora, contado mais sobre ela ou sobre nós porque, nesta primeira versão da minha história de fantasmas, não estávamos juntas muito antes de Eva chegar e Abalyn ir embora. Então, nesta versão, eu realmente não tive a chance de conhecê-la muito bem e não há muito o que contar sobre nós. Talvez na outra versão, em novembro e com o lobo, quando parece que nós estávamos juntas há mais tempo que umas poucas semanas. Eu poderia estar apenas esperando até contar a história dessa maneira para escrever sobre Abalyn com mais detalhe. A partir daqui, porém, é tudo suposição e não muito mais do que isso, esses pensamentos de por que eu poderia ter agido desse modo e como eu poderia agir de outro modo por mais tempo.
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Observamos as pessoas com os laptops e os iPhones. Não vi muita gente conversando nem mesmo lendo livros ou jornais. Quase todos estavam absorvidos demais por seus dispositivos para falar com outra pessoa. Fiquei me perguntando se eles chegavam a perceber alguma coisa que acontecia em volta deles. Pensei que deve ser muito estranho viver assim. Talvez não seja diferente de ter o nariz sempre metido num livro, mas para mim parece diferente. Por alguma razão, parece mais frio, mais distante. Não. Eu não sei por que isso me afeta dessa maneira.
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de dezessete linhas em uma nova folha de papel. Os eventos do verão são perfeitos em sua continuidade e uma mulher mais honesta não os dividiria em episódios. Não haveria interrupções de seções, sinais de libras, nem números para indicar os capítulos. Se eu contasse minhas histórias de fantasmas do modo que deveria, talvez não houvesse nem pontuação. Nem espaços entre uma palavra e a outra. Não ouço sinais de pontuação na minha cabeça. Todos os meus pensamentos correm juntos e eu os separo e prego no lugar. Eu poderia muito bem ser um lepidopterologista pregando com cuidado borboletas e mariposas mortas em placas de espuma. Todas essas palavras são cadáveres agora, cadáveres de mariposas e borboletas. Pardais em vidros com tampa.
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importe e nem mude nada. À noite, durante o jantar, nenhuma de nós disse muita coisa. Depois ela foi até a saleta e o sofá, com o laptop e os mundos digitais, pixelados. Seu deslocamento temporal. Fui para o quarto, onde me sentei para reler os meus “recortes” (penso neles desse jeito, mesmo que não sejam isso). Examinei as manchetes e as anotações que escrevi nas margens. Tem dois artigos de jornal fotocopiados, em particular, que consigo me lembrar de ter lido naquela noite. Lido do início ao fim, quero dizer. Um tinha a manchete “Suspensas as buscas pelo corpo da mulher misteriosa, suspeita-se de uma brincadeira”, do Evening Call (Woonsocket, sexta-feira, 12 de julho de 1914). Ele descreve como dois adolescentes de 15 anos estavam remando em uma canoa ao longo do rio Blackstone, perto de Millville, Massachusetts, quando se depararam com o corpo de uma mulher que flutuava com o rosto para baixo nas águas turvas. Eles a cutucaram com um remo, para ter certeza de que estava morta, mas não tentaram tirá-la do rio. Foram imediatamente até um policial e naquela mesma tarde, e novamente no dia seguinte, homens de Millville sondaram o rio com varas e usaram uma rede de pesca para dragar a área onde os garotos afirmaram ter visto o corpo. Mas nenhum corpo foi encontrado. Finalmente todos desistiram e decidiram que nunca tinha havido uma mulher morta, que os garotos ficaram entediados naquele dia de verão e inventaram a história para instigar a todos.
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A Sereia do Oceano de Concreto de INDIA MORGAN PHELPS O elevador do edifício está escangalhado e por isso tenho que me arrastar por doze lances de escada.
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O observador poderia ser levado a pensar que esse é o apenas o quadro de uma mulher que nada no mar, pois mostra pouca coisa dela acima da superfície da água. Pode ser que a confundam com uma suicida que lança um olhar final à faixa irregular da praia antes de mergulhar na superfície.
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— Não é bem um segredo – diz ela. — Acredito que ele até contou para alguns repórteres de revista sobre os sonhos. Uma revista em Paris e talvez uma aqui em Nova York também. Ele costumava conversar comigo sobre os sonhos. Eram sempre tão vívidos, e ele os anotava. Pintava, sempre que podia. Como ele pintou as sereias.
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Uma promessa que ela fez três décadas antes do meu nascimento. E eu sei agora como resumir o cheiro do apartamento. É cheiro de tempo.
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— O corpo ainda estava lá quando eles voltaram. Ninguém o perturbara. Os meninos não retornaram. Mas ele disse que a coisa toda foi feita em segredo, pois a câmara de comércio temia que um tubarão afastasse os turistas e estragasse o restante da temporada. Já acontecera antes.
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ela fala muito sobre como Nova York mudou, como o mundo inteiro mudou em volta dela.
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Com frequência, digo coisas que apenas gostaria que fossem verdade, como se soltar as palavras no mundo pudesse fazê-las assim. Pensamento positivo. Pensamento mágico, parte e parcela da minha mente doente. Digo coisas que não são verdade porque preciso que sejam verdade. É isso que os mentirosos e as pessoas tolas fazem. Eu sei o que quero dizer.
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Esses quadros dos veranistas são como as minhas resenhas de jogos – disse Abalyn. — Apenas conteúdo que você revira de modo mecânico para receber um cheque. Você sabe que não há arte neles, nem finge que há. Você mesma me disse isso.
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texto. Mas recebi apenas 50 dólares por essa história. É mais fácil ganhar dinheiro com os quadros. Eles são vendidos por muito mais. Bem, eu me refiro aos pinturas-por-dinheiro, os que os veranistas compram. — Esses quadros dos veranistas são como as minhas resenhas de jogos – disse Abalyn. — Apenas conteúdo que você revira de modo mecânico para receber um cheque. Você sabe que não há arte neles, nem finge que há. Você mesma me disse isso.
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Mas recebi apenas 50 dólares por essa história. É mais fácil ganhar dinheiro com os quadros. Eles são vendidos por muito mais. Bem, eu me refiro aos pinturas-por-dinheiro, os que os veranistas compram. — Esses quadros dos veranistas são como as minhas resenhas de jogos – disse Abalyn. — Apenas conteúdo que você revira de modo mecânico para receber um cheque. Você sabe que não há arte neles, nem finge que há. Você mesma me disse isso.
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mais fácil ganhar dinheiro com os quadros. Eles são vendidos por muito mais. Bem, eu me refiro aos pinturas-por-dinheiro, os que os veranistas compram. — Esses quadros dos veranistas são como as minhas resenhas de jogos – disse Abalyn. — Apenas conteúdo que você revira de modo mecânico para receber um cheque. Você sabe que não há arte neles, nem finge que há. Você mesma me disse isso.
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A Menina Submersa (Caitlín R. Kiernan)
- Seu destaque ou posição 2306-2309 | Adicionado: domingo, 23 de outubro de 2016 08:09:29

É mais fácil ganhar dinheiro com os quadros. Eles são vendidos por muito mais. Bem, eu me refiro aos pinturas-por-dinheiro, os que os veranistas compram. — Esses quadros dos veranistas são como as minhas resenhas de jogos – disse Abalyn. — Apenas conteúdo que você revira de modo mecânico para receber um cheque. Você sabe que não há arte neles, nem finge que há. Você mesma me disse isso.
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Mas recebi apenas 50 dólares por essa história. É mais fácil ganhar dinheiro com os quadros. Eles são vendidos por muito mais. Bem, eu me refiro aos pinturas-por-dinheiro, os que os veranistas compram. — Esses quadros dos veranistas são como as minhas resenhas de jogos – disse Abalyn. — Apenas conteúdo que você revira de modo mecânico para receber um cheque. Você sabe que não há arte neles, nem finge que há. Você mesma me disse isso.
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— A sua história – murmurou ela, e praticamente revirou os olhos azuis-esverdeados antes de tomar outro gole de café. — Não fica melhor com leite e açúcar? – apontei para a caneca. — Isso é pra quando eu quero com leite e açúcar – retrucou ela. — Quando quero café preto, é melhor preto.
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A bonança antes da tempestade; algumas vezes, usamos clichês porque não há palavras melhores. Tanto faz.
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A invocação do desconhecido.
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A invocação do desconhecido. O que mais tememos não é o conhecido. O conhecido, por mais horrível ou prejudicial à existência, é algo que podemos compreender. Sempre podemos reagir ao conhecido. Podemos traçar planos contra ele. Podemos aprender suas fraquezas e derrotá-lo. Podemos nos recuperar de seus ataques. Uma coisa tão simples quanto uma bala poderia ser suficiente. Mas o desconhecido desliza através de nossos dedos, tão insubstancial quanto o nevoeiro.
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O fragmento solto da minha mente que está agindo como A Leitora está ansioso em saber o que acontece depois, embora ela deva compreender que somente tornarei pública a narrativa no meu próprio tempo, conforme ganho coragem para fazer isso. Não estou disposta a acalmar a Tirania do Roteiro. As vidas não se desenvolvem em roteiros ordenados e o pior tipo de artifício é insistir que as histórias que contamos, para nós mesmos e uns para os outros devem ser forçadas a se conformar ao roteiro, narrativas lineares de A a Z, três atos, os ditames de Aristóteles, ação elevada e clímax e ação decadente e, em especial, o artifício da resolução. Não vejo muita resolução no mundo; nascemos, vivemos e morremos, e no fim disso há somente uma confusão feia de negócios inacabados.
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E então as mãos fortes de Abalyn afundaram nos meus ombros, me ergueram e tiraram do gelo e me levantaram da banheira. Talvez eu não lembre realmente dessa parte. Talvez estivesse inconsciente nessa parte, mas se não são lembranças verdadeiras elas me enganaram durante dois anos e meio. Abalyn me abaixou no chão do banheiro e me segurou enquanto eu tossia e vomitava água e fosse o que fosse que eu tivesse comido no almoço até minha garganta ficar ferida e meu peito doer. Ela estava se xingando e xingando a mim e soluçando como eu nunca ouvira ninguém gritar antes ou depois. Nunca gritei do modo que ela estava gritando, nunca fiquei tão destruída de tristeza e raiva e confusão. É arrogância minha agir como se eu soubesse o que ela estava sentindo enquanto eu vomitava e cuspia nos braços dela.
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Eva me ensinou que o desconhecido é imune às faculdades da razão humana, que uma coisa faminta debaixo d’água que você não consegue enxergar é mais assustadora que uma verdade tão apavorante que destrói seu mundo inteiro.
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Depois de Abalyn dizer o que disse, entrei em pânico. Alguém me diz que não consigo me lembrar do que definitivamente eu me lembro e algumas vezes eu entro em pânico. Não estou acostumada a isso como frequentemente finjo. Enquanto finjo estar acostumada a isso, quero dizer. Às falsas lembranças. Isso não tem acontecido há muito tempo, um retorno total ao pior que pode ficar. Estou tentando não me alongar no que poderia ter acontecido porque não aconteceu e nada de bom vem por chorar pelo leite derramado, certo?
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eu estava enganada ou simplesmente mentira? Por que eu teria mentido? Será que era uma lembrança incorreta? Além disso, eu escrevi que Abalyn me dissera que ela e eu fomos à exposição juntas, mas não fomos. Minha amiga Ellen, do sebo de livros, me chamou para ir, não Abalyn, e isso foi no fim de setembro, depois que Abalyn diz que já me deixara. Estou tentando não mentir. Estou mentindo.
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admiramos feito idiotas de nossa incapacidade de agir. O terapeuta que consultei durante algum tempo disse que isso era culpa. Eu perguntei a ele, naquele dia, se o truque para uma carreira lucrativa em psicologia era dizer às pessoas, não importa o que haviam feito, sentirem-se melhor, e assim absolvê-las da responsabilidade.
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O terapeuta que consultei durante algum tempo disse que isso era culpa. Eu perguntei a ele, naquele dia, se o truque para uma carreira lucrativa em psicologia era dizer às pessoas, não importa o que haviam feito, sentirem-se melhor, e assim absolvê-las da responsabilidade. Olho ao meu redor e vejo tantas pessoas dispostas a absolver-se da responsabilidade. Ao passar a bola, muda a culpa.
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O terapeuta que consultei durante algum tempo disse que isso era culpa. Eu perguntei a ele, naquele dia, se o truque para uma carreira lucrativa em psicologia era dizer às pessoas, não importa o que haviam feito, sentirem-se melhor, e assim absolvê-las da responsabilidade. Olho ao meu redor e vejo tantas pessoas dispostas a absolver-se da responsabilidade. Ao passar a bola, muda a culpa. Mas sou eu quem não age, assim como Perrault foi quem confundiu a cabeça dela, assim como foi Eva quem precisou tanto daquela invasão que estava disposta a pagar o preço, e isso não é nem a verdade, pois eu estava acumulando tudo num MasterCard que nunca imaginava ter condições de pagar. De qualquer forma, durante nossa sessão imediatamente posterior, o doutor que não deve ser nomeado aqui sugeriu que alguns de nós são menos suscetíveis à terapia que outros, que possivelmente eu não desejava “melhorar”, e então eu parei de vê-lo. Posso ser uma sobrevivente da culpa sozinha, sem incorrer em nenhum gasto adicional.
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Imp datilografou: “Estou livre dos fantasmas de Perrault e da Dália, e do lobo que mentia e de Eva que nunca existiram e nunca apareceram para mim. Eu os tranquei dentro de uma história da qual eles não podem sair para me prejudicar. Eu os exorcizei”.
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The Complete Billie Holiday on Columbia, 1933-1944, “‘Gloomy Sunday’ chegou aos Estados Unidos em 1936 e, graças a uma campanha publicitária brilhante, tornou-se conhecida como ‘A Canção Húngara do Suicídio’. Supostamente, depois de escutá-la, namorados descontrolados foram hipnotizados e atravessaram a janela mais próxima, da mesma forma que os investidores depois de outubro de 1929; as duas histórias são mitos urbanos”. Não sei dizer o que é verdade aqui e o que não é. Só posso apontar a semelhança com a Floresta do Suicídio, do Japão, depois da publicação de um romance. Só posso reiterar o que disse a respeito de as assombrações serem especialmente contágios de pensamentos perniciosos. Veja também “I Will Follow You Into the Dark” (2006), de Death Cab for Cutie, que Abalyn tocou para mim, e “(Don’t Fear) The Reaper”, de Blue Öyster Cult (1976; Rosemary tinha esse álbum). Além disso, talvez, Drowning Girl (1963), de Roy Lichtenstein, por meio dos olhos, não ouvidos.

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