Marcações #12 - O Anjo Silencioso - Heinrich Böll

O Anjo Silencioso - Heinrich Böll - As marcações:

"Ele ouvia com especial nitidez as mulheres com as malas atrás dele: elas mastigavam incansavelmente, parecia-lhe interminável o modo com que mastigavam, primeiro pão, muitos pães, durante um longo tempo, muito longo, ele ouviu aquele mastigar seco de roedores, comendo pão no escuro. Depois algo que era ao mesmo tempo úmido e estalava parecia ser frutas, maças. Finalmente beberam algo: ele ouvia com muita nitidez o gorgolejar quando bebiam da garrafa. Também à direita e à esquerda, atrás e na frente dele todos começaram a comer no escuro, pareciam apenas ter esperado pela escuridão para comer; eram centenas de dentes mordendo, mastigando em segredo, algumas vezes ouviam-se discussões logo abafadas; e esse mastigar múltiplo fixou-se no seu cérebro como o ruído da maldição para a qual ele não tinha nome: comer não era mais uma bela necessidade, mas uma lei sinistra que os obrigava a engolir, engolir a qualquer preço, enquanto sua fome não era satisfeita, mas parecia multiplicar-se: parecia que ofegavam. A comilança durou horas, e quando um dos cantos do abrigo parecia acalmar-se, uma nova leva era pressionada para dentro, de fora, da estação, o lugar ficava cada vez mais apertado, e depois de algum tempo começou de novo aquele ruído de papel, barulho de papelão partido, o remexer apressado de sacos, pacotes, o estalar de fechaduras, e aquele repugnante gorgolejar proveniente de garrafas, às escondidas na escuridão..." (pág. 98/99)

"Todos eles retornavam: o rosto de um cobrador de bonde que lhe tinha vendido um bilhete anos atrás transformou-se no rosto de um soldado deitado num acampamento de doentes ao seu lado: um rapaz de cujo curativo na cabeça os piolhos saíam rolando tanto no sangue fresco quanto no coágulo: piolhos que caminhavam pacificamente por um pescoço, por um rosto desfalecido, viu subirem pelas orelhas, animais destemidos que escorregavam, conseguiam agarrar-se novamente ao ombro, piolhos na orelha do mesmo homem que lhe havia vendido o bilhete para baldeação, há sete anos, 3.000 quilômetros a oeste: um rosto fino e sofredor que fora à época muito vivo e otimista..." (pág. 106/107)

"A perspectiva de receber algo para comer despertou-lhe novamente a fome; ele subia: aquele estranho bocejo violento e vazio, que crispava suas bochechas como se fosse uma cãibra: aquela nuvem de ar, aquele soluço exigente que deixava um gosto ruim na boca e que ao mesmo tempo o enchia de desespero: comer, pensou, é uma necessidade implacável que vai me perseguir por toda a vida; trinta, quarenta anos ainda ele teria que comer diariamente, pelo menos uma vez por dia, milhares de refeições ainda lhe eram destinadas, refeições que ele teria de arranjar de alguma forma: um encadeamento desesperador de necessidades, que o enchia de horror. Naquele dia ele já tinha se arrastado inutilmente por nove horas pelos escombros da cidade sem conseguir nada, nem mesmo aquilo de lhe havia sido prometido. Um combate terrível que ainda teria que combater muitas vezes, e não só para si mesmo; (...)" (pág. 141)

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